Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > crítica literária > O mundo do sexo – Henry Miller
Livros pequenos são ótimos para quando se quer ser introduzido ao estilo de um autor. A Editora José Olympio tem esta coleção simpatiquinha, chamada Sabor Literário, que publica títulos marginais de autores consagrados. Títulos marginais no sentido de menos famosos em relação a suas obras máximas – nunca no que poderia se referir à qualidade inferior. É assim que temos, nessa coleção, os contos de Sede de Mal, de Gore Vidal, Feia de Rosto, de Arthur Miller, e este O Mundo do Sexo, de Henry Miller.
Vítima da censura moralista ao romance Trópico de Câncer (1934), que ficou por décadas banido de alguns países de língua inglesa sob a acusação de se tratar de pornografia em vez de literatura, Henry Miller (1891-1980) mostrou, aos 50 anos de idade, com O Mundo do Sexo, o que pensava sobre liberdade, responsabilidade e sexo. Trata-se de um ensaio em tom autobiográfico com pegada fortemente panfletária, não exatamente delicioso de ser lido, mas intrigante, com certeza intrigante.
Lançado no Brasil inicialmente em 1975, pela Editora Pallas, a presente edição manteve prefácio do crítico e ensaísta Otto Maria Carpeaux, em que discorre sobre a questão se pornografia é um critério artístico ou de polícia. Esse prefácio vale tanto quanto o próprio escrito de Miller, pois Otto Maria tece um panorama histórico da censura que diversos escritores receberam desde Flaubert, com Madame Bovary, sempre acusados de ferir os bons costumes vigentes. Fosse Carpeaux ainda vivo, pediríamos que escrevesse um prefácio também a Negrinha, de Monteiro Lobato, para ver se, com seu discernimento e sagacidade, ele nos ajudaria a enterrar de vez a polêmica em torno do preconceito racial na literatura do século passado.
Dito isso, acho que a melhor maneira de demonstrar o interesse sobre O Mundo do Sexo é transcrever alguns trechos do ensaio. Como disse, é muito interessante.
O escritor
“Por outro lado, considero que, por mais violentamente desagradável que seja a reação de um leitor à obra escrita, quando nos encontramos face a face, ele geralmente acaba me aceitando irrestritamente. Dos muitos confrontos que tive com meus leitores, parece que as antipatias são rapidamente desfeitas na presença viva de um autor.” (p. 22)
– Isso é tão mais verdade quanto se vê o aumento de vendas que um romance tem logo depois da fala de seu escritor numa festa literária. Viva a tietagem, né, gente!
“O homem que conta a história não é mais aquele que experimentou os acontecimentos narrados.” (p. 77)
– Argumentos à discussão do biografismo.
“Todo o mundo escreve sua própria história dos acontecimentos mundiais. Se fosse possível comparar relatos, ficaríamos chocados ao descobrir que o histórico não possui nem realidade nem autenticidade, que o passado, privado ou universal, é uma selva impenetrável.” (p. 80)
– Agora, argumentos à discussão do historiografismo.
Autoconhecimento
“Como todo homem, sou meu próprio pior inimigo. Ao contrário da maioria dos homens, porém, sei também que sou meu próprio salvador. Sei que liberdade significa responsabilidade.” (p. 28)
– Em 1940, quando O Mundo do Sexo foi escrito, falar abertamente de liberdade sexual, só mesmo sob o verniz da seriedade, por mais contraditório que pareça.
“Nossas leis e costumes relacionam-se com nossa vida social, nossa vida em comum, que é o lado menor da existência. A vida real começa quando estamos sozinhos, face a face com o nosso eu desconhecido. O que acontece quando nos encontramos é determinado por nossos solilóquios interiores. Os acontecimentos cruciais e realmente essenciais que marcam o nosso caminho são frutos do silêncio e da solidão.” (p. 29)
– Além da pegada panfletária, existe uma energia oriental-zen-yogi-budista neste texto de Miller, como se o cara tivesse se retirado para meditar numa caverna e depois voltasse a seus discípulos para contar sobre todos os demônios que enfrentou.
“Enquanto não aceitarmos o fato de que a vida em si é baseada no mistério, nada aprenderemos.” (p. 30)
– Percebeu a energia que mencionei?
“Com o nascimento da faculdade de questionar, a tristeza se instalou.” (p. 39)
– É como Buda saindo pela primeira vez dos palácios de seu pai.
“Afinal, o mundo que habitamos é apenas a imagem refletida do nosso caos interior.” (p. 103)
– Talvez você, se concordar com a frase acima, possa vir a se interessar pela leitura dos três ensaios contidos em Por que virei à direita. Trata-se de três intelectuais que relatam sua opção pelo conservadorismo político porque aceitaram que o mundo será sempre falho, dado que a natureza humana é falha. Se Miller ainda vê solução numa utopia sexual, esses três intelectuais veem solução apenas no que não é utópico.
“Supor que, a não ser que reprimidos pelo medo do castigo, os homens se porão a matar e saquear, a sodomizar e torturar ad infinitum é injuriar a raça humana. Dados apenas meia oportunidade, os homens expressarão o melhor que existe neles.” (p. 103)
– Esse é um pensamento bem new age. Não sei dizer quando poderá se tornar uma realidade, mas quero crer que será assim.
Amor e sexo
“Estar apaixonado. Estar extremamente sozinho…
Assim começa… a mais doce e a mais amarga tristeza que podemos conhecer. A ânsia, a solidão que precede a iniciação.” (p. 43)
– Não se engane, é o único devaneio romântico em todo o livro.
“Nenhum homem ou mulher pode se gabar de ter dado uma boa foda a não ser que ele, ou ela, seja bem fodido também.” (p. 48)
– No livro, homem e mulher, se livres sexualmente, estão em pé de igualdade.
“No meu julgamento, o sexo foi mais bem entendido, mais bem expressado no mundo pagão, no mundo dos primitivos e no mundo religioso. No primeiro, era exaltado no plano estético; no segundo, no plano mágico, e no terceiro, no plano espiritual. Em nosso mundo, onde apenas o nível bestial impera, o sexo funciona num vazio.” (p. 74)
– Embora seja uma visão nostálgica, não deixa de ter graça.
“Se existe algo errado em nossa atitude em relação ao sexo, então existe algo errado em nossa atitude em relação ao pão, ao dinheiro, ao trabalho, em relação ao divertimento, em relação a tudo. Como pode uma pessoa desfrutar uma boa vida sexual se tem uma atitude distorcida e doentia em relação a outros aspectos da vida?” (p. 75)
– Pois é.
Amadurecer
“Seja homem! Depois, é claro, nos damos conta de que ‘ser um homem’ é algo completamente diferente. Tão certo como nasce o dia, fica claro demais que poucos são os que merecem o título: HOMEM. Quanto mais você se dá conta disso, menos homens você encontra. Apegue-se tenazmente ao pensamento e acabará no vazio do Himalaia, para descobrir lá que o que se chama homem ainda está à espera de nascer.” (p. 44)
– Preciso explicar que o ensaio começa mostrando como o interesse por sexo é despertado num menino de 7, 8 anos e se desenvolve até adolescência e a maturidade, quando ele é instado a se comportar como um homem. Vai assim, mesclando uma história a reflexões existencialistas que Miller chega à conclusão de que só viveremos plenamente quando sexo for algo absolutamente natural e sem censura em nossas vidas.
“Para viver, devemos não só estar despertos, mas ser despertados. Se estivéssemos realmente acordados, ficaríamos chocados com o horror da vida cotidiana. Ninguém em posse de suas faculdades mentais seria capaz de fazer as coisas que exigem de nós a todo momento do dia. Somos todos vitimas, quer no topo, como na base, ou no meio. Não há escape, nem imunidade.” (p. 97)
– Acho que apenas alguém que iguale a humanidade pode pensar em libertá-la por meio de utopias sexuais em vez de políticas. É o caso, creio, de Henry Miller.
“Mentalmente, moralmente, espiritualmente, estamos encalhados. O que realizamos ceifando cadeias de montanhas, domando a energia de rios poderosos ou deslocando populações inteiras como peças de xadrez, se nós mesmos continuamos as mesmas criaturas inquietas, infelizes e frustradas que éramos antes? Chamar tal atividade de progresso é extrema ilusão. Podemos obter sucesso em alterar a face da Terra até que ela pareça irreconhecível ao próprio Criador, mas se não formos afetados, qual é o sentido disso?” (p. 100)
– E essa reflexão está num livro que se chama O Mundo do Sexo.
Diferenças culturais
“Um francês não se envergonharia de admitir que se apaixonou por uma puta. Aquilo poderia levá-lo à loucura, mas ele jamais encararia a situação como um americano. Se enlouquecesse seria por causa do amor, não por causa de escrúpulos morais.” (p. 70)
– Nós, brasileiros, perdemos tanto quando miramos a cultura norte-americana em vez da europeia…
“Paris é um daqueles lugares em que a fêmea americana ronda como uma gata no cio. Pode estar à procura do amor, mas acabará ficando com o sexo a qualquer momento.” (p. 70-71)
– É?
“Previu-se muitas vezes que um novo e mais elevado tipo de homem surgirá um dia neste continente [América do Norte]. Se for o caso, terá de ser a partir dos novos rebentos. A safra atual pode render um rico estrume, mas nunca dará uma nova raça. Viajando nos metrôs de Nova York, vejo a nova geração que brotou durante minha ausência, os jovens que já chegaram à maturidade e estão reproduzindo sua espécie. Olho para eles como olharia para cobaias. Ainda fazendo os velhos truques. Em seu rosto está escrito: desesperança. Estavam perdidos desde o nascimento. É triste refletir, quanto melhores as condições, pior o resultado. Podemos ensinar-lhes a gerar jovens maiores, mais saudáveis, mas eles e sua prole foram marcados como peões a serem sacrificados num experimento sem sentido.” (p. 93)
– Não é impressionante que um pessimista como Henry Miller tenha vivido até os 89 anos?! Onde estudaram que o bom humor garante longevidade?
revisto por Mayra Corrêa e Castro ® 2012
MILLER, Henry. O mundo do sexo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.