Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > autoras > O Infinito em um Junco – Irene Vallejo
Há tantos livros escritos por pessoas apaixonados por eles que se pode perguntar: cabe mais um? Em se tratando deste titulo de Irene Vallejo, cabe. O infinito em um junco ganhou o Premio Nacional de Ensayo do Ministério de Cultura da Espanha entre outras honrarias – e certamente honrou o desejo de sua autora, que foi o de compartilhar duas de suas paixões: o mundo clássico e os livros. Pense na Biblioteca de Alexandria e em Demétrio de Faleros, tido como o cara que inventou o ofício de bibliotecário depois de conhecer a própria coleção de livros de Aristóteles (Calímaco seria o pai dos bibliotecários); pense em Homero, quem seria Homero? Nos aedos, nos rapsodos, nos bardos – todos impactados pelo advento do livro.
A história desta tecnologia chamada livro está atrelada à descoberta de técnicas que permitiram a fixação da escrita: pedra, argila, papiro, pergaminho, papel. Outras invenções, entretanto, também foram importantes: a mudança do rolo vertical de papel para o de páginas costuradas, a descoberta do espaçamento entre as palavras, da pontuação e, glória das glórias, do título e da ordem alfabética. Depois vieram o sumário, a paginação, as capas, a prensa e todo o resto.
Aproveite algumas melhores partes que selecionei e comentei pra você.
Sempre houve quem abrisse os caminhos
“A experiência já lhes ensinou que só gente perigosa viaja: soldados, mercenários e traficantes de escravos.” (p. 13)
– Já incluíram os turistas entre os viajantes perigosos? Sabemos que, como uma nuvem de gafanhotos, podem arrasar toda uma cidade…
“Estes artistas itinerantes [os bardos], os maltrapilhos enviados das musas, sábios boêmios que em seus cantos explicavam o mundo, metade enciplopedistas, metade bufões, são os antepassados dos escritores.” (p. 117)
– O movimento mais próximo que resgata a tradição dos bardos é do rap com seus M.C.s e dos campeonatos de rimas. Mas há um site – Lyrik Line – que abriga poesia declamada. Entre lá, você vai adorar!
“O alfabeto foi uma tecnologia ainda mais revolucionária do que a internet. Construiu, pela primeira vez, uma memória comum, expandida e ao alcance de todos.” (p. 135)
– A gente sempre subestima o passado, mas lembre se você conseguirá deixar pras gerações futuras algo tão grandioso e importante quanto o que as gerações nos legaram: o fogo, a roda, a agricultura, o alfabeto, a própria noção de Deus.
“Na passagem do século V a.C. para o IV a.C., entram em cena pela primeira vez personagens até então desconhecidos: os livreiros. É nesta época que a nova palavra bybliopólai (vendedores de livros) aparece nos textos dos poetas cômicos atenienses.” (p. 152)
– Há menos de 100 postagens com a hashtag #bybliopólai no Instagram neste momento e a palavra ainda não é um nome de perfil, bookgrams!
“Na verdade, como diz Jorge Carrión, as livrarias sedentários são uma anomalia moderna em uma tradição principalmente nômade e poética.” (p. 154)
– “Livrarias sedentárias” em tempos de “livros livres” é algo inesperado. Você sabe, né, “livros livres”, aquelas caixas espelhadas pela cidade em que você pode pegar um livro e deixar outro sem que tenha que ser na mesma caixa. O livro é livre, fica circulando pela cidade e pousa onde for largado,
“Antifonte, outro dos dez oradores, foi um autêntico pioneiro, e poderia figurar na vanguarda da psicanálise e das terapias da palavra. (…) Abriu um estabelecimento na cidade de Corinto e pendurou na porta um cartaz no qual anunciada que ‘podia consolar os tristes com discursos adequados’. (…) Usava o fármaco da palavra persuasiva para curar a angústia e, pelo que os autores antigos nos dizem, chegou a ser famoso por seus argumentos sedativos.” (p. 223)
– Ah que eu bem gostaria de ter conhecido Antifonte. Hoje, lamentavelmente, ele teria um perfil no Instagram anunciando sua Semana da Palavraterapia e depois venderia seu curso.
“Nasceu entre os séculos I a.C. e I um novo destinatário no Império Romano: o leitor anônimo. Hoje parece triste publicar um livro que só será lido pelos parentes e amigos; para os autores romanos, porém, era a situação mais habitual, segura e confortável. Abolir essas fronteiras, aceitar que qualquer pessoa se debruçasse sobre seus pensamentos e emoções em troca de um punhado de denários, foi uma experiência vivida por muito escritores como um desnudamento traumático.” (p. 327)
– Imagine isto: ser lido por anônimos, um desnudamento traumático. Postar sua recuperação no quarto do hospital, trauma nenhum – exceto o que te levou até aquele leito.
“Embora as livrarias pareçam espaços serenos e afastados do nosso mudo frenético, em suas prateleiras vibram as lutas de cada século.” (p. 338)
– Vero, vero.
Não contem com o fim do livro
“Sem dúvida, a tecnologia é deslumbrante e tem força suficiente para destronar as antigas monarquias. (…) O mais curioso é que ainda podemos ler um manuscrito pacientemente copiado há mais de dez séculos, mas não conseguimos mais acessar uma fita de vídeo ou um disquete de alguns anos atrás, a menos que tenhamos conservado no quarto de despejo em casa todos os sucessivos computadores e aparelhos de reprodução que já tivemos, como um museu de caducidade.” (p. 19)
– O mais curioso não é isto. O mais curioso é termos voltado à pré-escrita com os audiobooks: pessoas ouvindo histórias em vez de as ler…
“Num mundo caótico, adquirir livros é um ato de equilíbrio à beira do abismo.” (p. 40)
– Os livros, no Brasil, ainda não caros. Mas, diferentemente do streaming, há bibliotecas públicas. Como fervorosa defensora da leitura em papel, sempre estimo que as pessoas parem de se ansiar voluntariamente nas redes sociais e encontrem a paz ao ler um livro.
” (…) possuir livros é um exercício de equilíbrio na corda bamba. Um esforço para unir pedaços dispersos do universo e formar um conjunto dotado de sentido. Uma arquitetura harmoniosa frente ao caos. Uma escultura de areia. O refúgio onde protegemos tudo aquilo que tememos esquecer. A memória do mundo. Um dique contra o tsunami do tempo.” (p. 49)
– Manguel, já resenhado algumas vezes aqui, concordaria comigo que não podemos nos desfazer de nossos livros a menos que nos desapeguemos da imagem, sempre galante, que tínhamos de nós mesmos na época em que os compramos.
“Ler é um ritual que implica gestos, posições, objetos, espaços, materiais, movimentos, modulações de luz. (…) o cerimonial íntimo de entrar num livro.” (p. 59-60)
– Pondé diz ser muito pouco cerimonioso para ler – porque lê toda hora e porque esta é sua profissão. Também sou pouco cerimoniosa: leio no carro, lia muito em ônibus quando andava de ônibus, lia muito em fila de banco quando a gente ainda ia em agências… Vem daí o hábito, antigo, de dobrar as páginas pra assinalar passagens já que nem sempre disponho de um lápis pra riscá-la. Quase todos os meus livros têm folhas dobradas. Os que não possuem é porque são inteiramente ruins. Neste meu sistema de marcação, se a dobra é em cima, a parte boa tá na metade de cima da página; se embaixo, na metade debaixo. Mesmo que passe anos, sempre consigo descobrir qual foi o parágrafo de que gostei apenas por saber se eles tá em cima ou embaixo no livro. Nesta altura você já deve ter percebido como é enfadonho realçar partes de que gostamos em livros digitais. Livros digitais copiam o pior dos antigos rolos de papiro e pergaminho: a impossibilidade de se localizar na leitura por pistas visuais muito óbvias: página esquerda ou direita, alto ou baixo, no início do livro, na metade ou mais pro fim. E quando você quer recuperar seus realces, como num Kindle, se eles forem muitos, abre-se novamente uma longa lista de rolagem… Zero prático apesar da aparência.
“Os anjos têm o dom de ouvir o pensamento das pessoas. Embora ninguém esteja falando, eles captam um murmúrio constante de palavras sussurradas. São as sílabas silenciosas da leitura. Ler constrói uma comunicação íntima, uma solidão sonora que os anjos acham surpreendente e milagrosa, quase sobrenatural. Dentro da cabeça das pessoas, as frases lidas ressoam como um canto à capela, como uma prece.” (p. 62)
– Se você lê, você conhece esta sensação do “canto à capela”. Eu traduzo e por diversas vezes já disse que o que mais gosto neste ofício é da conversa silenciosa com o autor.
“A escrita e a memória não são adversárias. Na verdade, ao longo da história uma salvou a outra: as letras preservam o passado, e a memória, os livros perseguidos.” (p. 138)
– Penso que a gente tenha perdido o medo de nossos livros serem queimados ou de qualquer outra coisa desaparecer. Nem mesmo os números dos celulares das pessoas mais próximas guardamos de cor tamanha confiança temos de que não precisaremos nunca sabê-los de cor.
“Não é eliminando dos livros tudo o que acharmos inapropriado que vamos salvar os jovens das ideias condenáveis. Muito pelo contrário: dessa maneira os tornaremos incapazes de reconhecê-las.” (p. 231)
– Em breve, teremos inúmeros Sidartas Gautamas nos lares do mundo ocidental. Infelizmente, quando forem ao mundo, nem todos terão a capacidade de se tornarem um Buda. Então seria melhor não os proteger tanto. Afinal, são ideias. Não são a coisa em si.
“(…) recomendar e entregar uma leitura escolhida é um gesto poderoso de aproximação, de comunicação, de intimidade com outra pessoa.” (p. 330)
– Não presenteie com livros quem costuma comprar os seus. Você não acertará. Só uma dica, tá. Por experiência própria. No caso, eu a presenteada. Indicação de livreiro é uma coisa profissional. Seu palpite de que vou amar o livro que você leu é um erro.
“Apesar da força do marketing, dos blogs e das críticas, quase sempre devemos as coisas mais bonitas que lemos a algum ser querido – ou a um livreiro que virou um amigo. Os livros continuam nos unindo e entrelaçando de uma forma misterioriosa”. (p. 331)
– Sobre o amigo querido, não comigo. As coisas mais bonitas que li descobri sozinha fuçando livraria. As coisas mais chatas que li, li porque algum amigo me indicou. A exceção que confirma a regra foi Harry Potter: meu irmão caçula quem me deu o livro pra ler.
“Há uma grande história quase ignorada por trás da sobrevivência dos clássicos mais antigos: a história de todas as pessoas anônimas que conseguiram, por paixão, conservar um frágil legado de palavras e a sua misteriosa lealdade a esses livros. (…) Nós, os leitores de hoje, podemos nos sentir solitários cultivando os nossos rituais vagarosos em meio à pressa cotidiana. Mas temos uma longa genealogia atrás de nós, e não podemos esquecer que protagonizamos, todo juntos, sem nos conhecer, um salvamento fantástico.” (p. 403)
– Obrigada, genealogia, por sua devoção aos textos de sempre. Prometo, aqui, fazer minha parte por Shakespeare, Balzac, Machado.
Narrar
“A visão dos historiadores contemporâneos depende do grau de idealismo e da época em que escrevem.” (p. 37)
– Entenda que até Foucault, Derrida e esta patota, acreditava-se que a história tinha o mesmo dom do jornalismo: ser imparcial e se ater apenas a fatos. Obviamente, nem ninguém acredita mais em nada disso sobre o jornalismo.
“Penso que a tatuagem é uma sobrevivência do pensamento mágico, o vestígio de uma fé ancestral na aura das palavras.”(p. 85)
– Palavras que podem ser desenhos como os hieróglifos e você compreende que não apenas as tatuagens que são efetivamente palavras, mas também os desenhos.
“Você, que está lendo este livro, viveu durante alguns anos num mundo oral. Dos primeiros balbucios em tatibitate até aprender a ler, as palavras só existiam na voz. (…) Depois, veio a escola: as linhas, os círculos, as letras, as sílabas. Realizou-se em você, em pequena escala, a mesma passagem que a humanidade fez da oralidade à escrita.” (p. 104)
– Maryanne Wolf diz que a leitura é uma conquista recente, tanto na escala da humanidade, quanto na individual. Por isto, perde-se fácil o hábito. Ler, ela diz, é uma conquista.
“Embora os rebeldes e revolucionários continuassem sendo tão malsucedidos quanto antes, agora seus ideais tinham novas possibilidades de sobreviver a eles e ser difundidos. Graças ao alfabeto, algumas causas perdidas acabaram vitoriosas com o passar do tempo.” (p. 124)
– Não recordo quem disse que a maneira mais simples de uma ideia vingar é aguardar que a velha geração morra. Mas às vezes se aguarda uma geração morrer pra que velhas ideias renasçam.
“Sócrates temia que, por culpa da escrita, os homens abandonassem o esforço da reflexão própria. Receava que, graças ao auxílio das letras, todos confiariam no saber dos textos e, eliminando o esforço de compreendê-los a fundo, se contentariam com tê-los ao alcance da mão.” (p. 133)
– Coitado de Sócrates se visse o Google e a redes sociais depois do Google.
“Em todas as sociedades que utilizam a escrita, aprender a ler tem um pouco de rito iniciático.” (p. 143)
– Enquanto mexer no celular se aprende em casa, quase como se aprende a comer sozinho ou a se limpar, ler e escrever ainda se aprende na escola. Ninguém deveria julgar que as crianças são mais inteligentes hoje por saberem abrir sozinhas o You Tube no celular com 2 anos de idade: elas ainda precisam ir à escola aprender a ler e escrever, algo que seus avós já sabem fazer há 80 anos.
“Existe, sem dúvida, o prazer de enumerar.” (p. 174)
– Sem dúvida. E é por isto que o ocaso da criatividade é redigir um post com uma lista de “top 3”, “5 erros”, “10 fatos”, etc.
“Anos depois, quando eu mesma tive que enfrentar a vertigem de uma sala de aula, entendi que é preciso gostar dos alunos para expor diante deles o que você ama (…).” (p. 177)
– Nesta época de fórmula de lançamento, o que mais há são professores que detestam seus alunos, mas amam o dinheiro deles.
“Os gregos achavam que o amor é a principal força educadora. Não respeitavam o professor que ensinava por dinheiro, corria atrás de clientela e exigia pagamento.” (p. 183)
– Bom, tirando o contexto aristocrático da educação grega na Antiguidade, tirando a questão de que ensinar hoje é uma das profissões mais mal remuneradas no Brasil, a ideia de que só é professor quem ama ensinar ainda é muito difundida para a educação formal (escola e faculdade). Na educação profissionalizante (cursos livres), é só putaria mesmo. As exceções apenas confirmam a regra.
“Os setores que desde então dirigem a sociedade desigual preferem a linguagem da seriedade. Porque no riso mais genuíno ainda pulsa a rebeldia contra a dominação, a autoridade e as hierarquias – o temido desacato.” (p. 209)
“Mesmo nas democracias contemporâneas, sempre surgem polêmicas acaloradas sobre os limites entre o humor e a ofensa. (…) A tolerância tem conjugação irregular: eu me indigno, tu és suscetível, ele é dogmático.” (p. 210)
– A tolerância tem conjugação irregular. Arrã.
“Os habitantes do mundo antigo estavam convencidos de que não é possível pensar bem sem falar bem: ‘os livros fazem os lábios’, afirmava um ditado romano.” (p. 213)
– Primeiro leia bem, depois fale bem, então raciocinará bem. Uma versão mais canalha desta ideia é: antes de arrumar o mundo, arrume seu quarto.
“A literatura latina é um caso muito peculiar: ela não nasceu espontaneamente; foi gerada por encomenda, in vitro. O parto induzido ocorreu num dia do ano 240 a.C., para comemorar a vitória de Roma sobre Cartago.” (p. 285)
– Acho pouco surpreendente que a literatura romana tenha iniciado por uma encomenda quando a religião anglicana nasceu porque um rei queria se divorciar pra casar com a amante.
“Eu, então menina, ouvia aqueles diálogos lentos, fluviais, estranhos e indecifráveis como feitiços. Para mim, falar parecia ser o objetivo da existência adulta.” (p. 342)
– Entendo que há criança que se aborrecem com as conversas de adultos porque queiram brincar. Eu, menina, me aborrecia ter que ir brincar em vez de ficar ouvindo estas conversas.
“Pelo que sabemos, esse episódio inaugurou na Europa a censura do tipo moralizante, uma obsessão de controle que se deparou aqui com seu primeiro fracasso. Arte de amar, um livrinho alegre e erótico perseguido por um dos imperadores mais poderosos de Roma e várias vezes proibido em épocas posteriores por ser obsceno e escandaloso, encontrou o caminho até nossas bibliotecas. Sua história é a história de um longo salvamento, realizado século após século pelos leitores em que Ovídio confiou, enfrentando as autoridades. A subversão também forja clássicos.” (p. 385)
– Sempre me espanta a amnésia de todo censor quanto ao fracasso do método em outras épocas.
“Embora a censura raramente faça desaparecer as ideias que persegue – muitas vezes lhe dá asas -, os governantes têm uma estranha mania de reincidir nela.” (p. 387)
– Pois!
“Toda geração distingue entre o bom gosto – o meu – e a vulgaridade – a sua.” (p. 410)
– Lembrando que basta aguardar 40 anos que o vulgar volta à moda.
Junco
“Antes da invenção da imprensa, cada livro era único.” (p. 79)
– Aqui mesmo em minha cidade, Curitiba, há uma editora, a Arte e Letra, que faz livros artesanais, numerados, uns até com serigrafia na capa. Curiosamente, a mecanização da impressão sob demanda, que permite que você imprima apenas 1 livro por vez, uma impressão um tanto quanto “artesanal”, gera livros uns iguais aos outros, distintos apenas na coloração que aquele lote de papel e tinta tiverem – pois eles sempre têm. Mas, talvez, o humor do fotocopista pregue peças na impressora e alguns pequenos defeitos possam singularizar um cópia da outra.
“O escritor italiano Vasco Pratolini afirmou que a literatura consiste em fazer exercícios de caligrafia sobre a pele. Não estava pensando no pergaminho, mas a imagem é perfeita. Quando esse novo material de escrita se impôs, os livros se transformaram exatamente nisto: corpos habitados, pensamentos tatuados na pele.” (p. 83)
– Seria, então, o ebook uma volta à escrita na pedra (silício, chip…)?
“Um dia, [Anna Akhmátova] ao ver no espelho seu aspecto acabado e os sulcos que o sofrimento estava abrindo em seu rosto, ela recordou a imagem das antigas tabuletas mesopotâmicas. E escreveu um verso triste é inesquecível: ‘Agora sei como a dor traça rudes páginas cuneiformes nas bochechas.'” (p. 84)
– Sempre que leio sobre a aparência do rosto velho lembro da Constanza Pascolato no Roda Viva dizendo que de manhã ela não se maquia: ela faz uma verdadeira obra de restauração na pele.
“Um manuscrito grande podia causar a morte de um rebanho inteiro.” (p. 89)
“Nós preferimos ignorar que o progresso e a beleza incluem dor e violência. Em consonância com essa estranha contradição humana, muitos desses livros serviram para espalhar pelo mundo torrentes de palavras sábias sobre o amor, a bondade e a compaixão.” (p. 89)
– O único momento em que uma pessoa parva entende a natureza contraditória do ser humano é quando, pra defender seu apetite pela carne, diz que vegetarianos também matam outros seres vivos pra se alimentar.
“A grande ironia de tudo isso é que Platão explicou o desprezo do professor [Sócrates] pelos livros num livro, conservando assim suas críticas à escrita para nós, seus futuros leitores.” (p. 134)
– A crítica mais arriscada que se faz é de sua própria época.
“Assim, a literatura ganhou a liberdade de se expandir em todas as direções sem ter que administrar com avareza a capacidade restrita da memória. (…) Ao contrário da oralidade, que favorecia as formas e ideias tradicionais (…) Nos livros há lugar para proposições excêntricas, vozes de identidades individuais, desafios à tradição.” (p. 111)
– Assim, a memória ganhou a liberdade de se expandir em todas as direções sem ter que administrar com avareza a capacidade restrita dos livros (…) Na internet há lugar para proposições excêntricas, vozes de identidades individuais, desafios à tradição…
“O nascimento da filosofia grega coincidiu com a juventude dos livros, e isso não se deu por acaso. Diferentemente da comunicação oral – baseada em relatos tradicionais, conhecidos e fáceis de lembrar -, a escrita permitiu criar uma linguagem complexa que os leitores podiam assimilar e analisar com tranquilidade.” (p. 147)
– Se é mais fácil você desenvolver um espírito analítico tendo um livro nas mãos, é mais fácil desenvolver um espírito imbecil tendo um vídeo do Tik Tok na frente dos olhos.
“É por isso que sempre carregamos livros conosco – ou dentro de nós – para toda parte; até para os territórios de horror, como eficazes estojos de primeiros socorros contra a desesperança.” (p. 263)
– Talvez esta garotada não compreenda esta referência, porque seus celulares não entregam esperança como livros bem escolhidos conseguem entregar.
“(…) uma reflexão do livreiro Paco Puche em seu Memoria de la librería:’Não de pode medir o efeito que uma livraria tem na cidade que a acolhe, nem a energia que espalha por suas ruas, que transmite aos seus habitantes. Evidentemente, não bastam os números de clientes e de vendas, nem as cifras de negócios, porque a influência da livraria na cidade é sutil, secreta, inapreensível.” (p. 339)
– Morei em São José dos Campos até ir para Campinas fazer faculdade. Em São José, na minha infância, não havia livrarias. Havia papelarias que vendiam alguns livros didáticos e livros infantis. Havia jornaleiros e eventualmente alguns livros de bolso. Então, fui uma menina que frequentou muito, todos os dias, a biblioteca da escola. Eu lia tantos livros que as bibliotecárias me deixavam circular entre as prateleiras pra eu mesma ver o que queria ler. Quando cheguei em Campinas, descobri uma livraria de rua, de esquina. Foi meu primeiro deslumbramento. Eu nunca havia visto tantos títulos juntos, tantos tão interessantes. Mas eu não tinha dinheiro pra comprar, então voltei a ser rata de biblioteca – mas a biblioteca da Unicamp, diferentemente da de minha escola, permitia livremente que a gente circulasse entre as prateleiras. Outro choque foi minha primeira vez em Curitiba. Eu chegara de madrugada e na manhã seguinte fui caminhar pelo calçadão da XV de Novembro. A Livraria Guignone tinha uma loja toda com mobiliário de madeira na rua. Grande, grande como eu ainda não tinha visto nenhuma livraria. Cheia de livros lindos, os livros de moda que eram uma paixão que eu tinha à época. Desta vez eu já era bolsista do CNPq, tinha um pouco mais de dinheiro, então comprei alguns livros que não encontrava em Campinas. Livrarias são um templo pra mim.
“Essa coincidência me pareceu notável e me fez pensar nas peculiares habilidades que esse ofício milenar requer: administrar farmácias de livros; entender os gostos, as opiniões e as tendências dos leitores; captar as razões da sua admiração, do entusiasmo, da alegria ou do desagrado por esta ou aquela obra; ou seja, penetrar no feudo dos caprichos e obsessões individuais e todo dia abrir as portas para um trabalho de expediente extenso, recibos, fretes e dor nas costas, frequentemente idealizado.” (p. 340)
– Qualquer um que tenha uma grande biblioteca sabe que livros pesam e acumulam pó e que limpá-los é uma tarefa ingrata.
“Não podemos esquecer que o livro de páginas foi vitorioso, em grande medida, porque favorecia as leituras clandestinas, negadas, não consentidas.” (p. 358)
“Comparando-os com o manuseio complicado do rolo, que exigia as duas mãos, os leitores mais sonhadores se apaixonaram pelos livros de páginas, que podem ser lidos com ‘uma só mão’ – para usar a expressão de Luis García Berlanga aplicada à literatura erótica.” (p. 358)
– Esta parte da história do livro deixarei pra você descobrir, mas tem a ver com a circulação das primeiras bíblias. A alusão à literatura erótica dispensa explicações, suponho. Senão, use sua imaginação.
Comentários das citações escritos por Mayra Corrêa e Castro (C) 2024
VALLEJO, Irene. O infinito em um junco: a invenção dos livros no mundo antigo. Tradução Ari Roitman, Paulina Wacht. 1a. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2022. 496 p.