Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > autoras > O conto da mulher brasileira – Edla van Steen (org)
1978. No Brasil, o AI-5 e a censura prévia à imprensa eram revogados enquanto as grandes greves no ABC paulistano empurravam o país rumo à democratização. Instituiu-se o Dia Nacional da Consciência Negra. Também o Papa João Paulo II era eleito, a Argentina ganhava a Copa do Mundo em casa. A novela Dancin´ Days e o nascimento do primeiro bebê de proveta do mundo refletiam que os costumes sexuais tinham mudado.
Foi o ano do lançamento desta antologia organizada por Edla van Steen pra mostar a fecundidade de autoras brasileiras. Entre elas, apenas uma exigência: que estivessem vivas e que já tivessem livros publicados. Trinta e seis anos depois, das dezenove autoras, podemos reconhecer facilmente o nome de apenas três – com boa vontade, cinco: Hilda Hist, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, e Vilma Arêas e Zulmira Ribeiro Tavares. As outras, embora tivessem ganhado Jabutis e publicado vários romances ou volume de contos, ficaram lá em 1978.
Então este é o primeiro impacto da leitura do livro: notar como é frágil a carreira literária. Como são quase inexistentes carreiras literárias femininas em comparação com masculinas.
O segundo impacto vem dos temas: amor. Se fosse lançada nos dias de hoje (a antologia foi reimpressa em 2008), tal profusão de contos sobre amores traídos, amores não correspondidos e amores terminados seria considerada papo de mulherzinha. Tanto mais quanto a grossa parte dos textos é fluxo de consciência, com aquela pegada de divã de analista. Não sei se empolgariam. Na literatura, sempre há temáticas datadas. Na verdade, autores que são lidos por séculos assombram, por isso são tão cultuados. São fantasmas, que vencem a estranheza humana por tudo que é extemporâneo. São chocantes.
Desta antologia, formidável é o conto de Lygia Fagundes Telles, As Formigas. O título imediatamente remete para o conto A formiga-argentina, em Os Amores Difíceis de Ítalo Calvino. Mas Lygia consegue criar um triller com menos linhas, menos filosofia e só com personagens femininos. Vale uma leitura à noite.
E da literatura feminina brasileira já acusaram o classe-médiacismo. Este livro não desmentirá. Aí é que devemos entrar com fatos históricos, como fizemos lá no alto: na década de 1970, a taxa de analfabetismo no país era de 33% e, se embora ligeiramente menor entre mulheres que em homens, igualmente grande entre negros, população rural e regiões norte, nordeste e centro-oeste. São nossos trunfos: desigualdade de gênero, raça e demografia. Qualquer literatura que perfure um desses três fatores já é vitoriosa.
Razões fortíssimas
“ – É bom gostar de você, e além do mais você gosta de chá!” (do conto O piano, de Cristina de Queiroz, p. 24)
– Concordo em gênero, número e grau. Os enófilos que me perdoem, mas gostar de chá é fundamental.
“Aquelas mulheres elegantes não costumavam falar nunca quando estavam sozinhas. O diálogo era uma vulgaridade que já haviam superado há muito tempo.” (do conto Port Moresby, de Dinah Silveira de Queiroz, p. 40)
– Taí, muito justo: não dialoguem porque é vulgar 😮
“O medo é o sentimento mais coletivo que existe e estou com medo.” (do conto Relatório final, de Márcia Denser””, p. 100)
– Nem precisa justificar: medo é.
Ironia feminina
“ – Imagine você. Em Port Moresby, as mulheres são trocadas por cabeças de gado, sacas de café e cabras!
“ – Quer dizer, então, que lá elas valem alguma coisa […]” (do conto Port Moresby, de Dinah Silveira de Queiroz, p. 36)
– Não diga que concorda!
“ – É, aqui é o contrário. Com essa crise de homem, se as mulheres pudessem, compravam maridos. Eu até era capaz de dar umas cem sacas de café, quem sabe se chegava até as trezentas.” ( do conto Port Moresby, de Dinah Silveira de Queiroz, p. 39)
– É a prova de que já em 1978 faltava homens.
“Acho que a coisa mais forte em você foi mesmo o seu amor por mim […]” (do conto Dia 24, à noite, de Myriam Campello, p. 129)
– Agora tripudiou em cima do cadáver.
Uóduborógodó
“Não vou ser nunca o príncipe encantado bicha que você adoraria que eu fosse.” (do conto Os mortos não têm desejos, de Edla van Steen, p. 52)
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“Alguma parte da conversa no bar (quando eu já me encontrava debaixo de uma grossa camada de resíduos como um peixe espiando as pessoas dentro de um aquário turvo que o dono não limpasse há semanas) ele sugeriu o hotel e fofamente devo ter concordado.” (do conto Relatório final, de Márcia Denser, p. 102-103)
– Mulher bêbada e cantada? Nanão, nem se ela aceitar fofamente.
“O segredo que a obsidiava nada mais seria do que um distúrbio nervoso de virgem velha, derradeira revolta ou vingança do corpo inútil cansado de esperar a realização da sua finalidade feminina.” (do conto, Luar no beco, de Maria de Lourdes Teixeira, p. 112)
– Calma, estávamos em 1978 e a frase saiu do texto de uma mulher. Não vai detonando não.
Vingança feminina
“Grave mais eu, que sei como te levar a reais gravidades, em poucas horas posso esmagar em ti soberba e gravidade e te fazer não mais olhar a janela mas saltar por ela.” (do conto, Lucas, naim, de Hilda Hilst, p. 71)
– Tá entendendo, né? Às vias de fato.
Imagens
“E pior do que isso: não conseguia ganhar o dinheiro suficiente para ser perdoado de sua Calábria, da sua falta de etiqueta à mesa, fungando enquanto tomava sopa, e da sua pronúncia com vogais abertas como casas escancaradas em dias de sol.” (do conto Aida Arouche Magnocavallo, de Helena Silveira, p. 63)
– Nunca pensei nas vogais abertas como casas escancaradas ao sol, mas amei.
“ […] te amo como as begônias tarântulas amam seus congêneres, como as serpentes se amam enroscadas lentas […]” (do conto Lucas, naim, de Hilda Hilst, p. 70)
– Que tal a da serpente, hein? Dá até um gelado de pensar.
“ – Que é que você está fazendo aí? – perguntei.
“ – Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo?” ( do conto As formigas, de Lygia Fagundes Telles, p. 93)
– “Já enturmadas” é legal, não é?
“- Vá dormir logo. Não fique pererecando pela casa que nem alma penada. Não presta… – recomendou a voz sem inflexões.” (do conto, Luar no beco, de Maria de Lourdes Teixeira, p. 113)
– “Pererecando” eu nunca tinha ouvido. Muito bom.
“A feiúra lhe provocava um certo mal-estar, não a feiúra dos vampiros ou do conde Drácula, mas aquela feiúra das garrafas térmicas.” (do conto Em uso, de Rachel Jardim, p. 140)
– Imagine que este texto se perdeu durante décadas e foi achado numa caixa, sem data de quando foi escrito. Como um estudioso determina a época em que ele foi escrito? 1. Feiúra dos vampiros: foi antes da Saga Crepúsculo, foi antes de Entrevista com Vampiro. Logo, texto escrito antes de 1990; 2. feiúra do conde Drácula: depois de 1940, mas antes de 2000, se bem que tem um Gary Oldman aí em 1992 pra atrapalhar. Não – definitivamente, antes de 1990. Tem gosto pra tudo; 3. feiúra das garrafas térmicas: depois do advento das lojas de 1,99 não foi; então, antes de 1990.
“Atravessou a lagoa pensando que a manhã era de tal delicadeza que ao respirá-la todos ficavam mais leves e que tudo parecia flutuar.” (do conto, Em uso, de Rachel Jardim, p. 142)
– Essas manhãs às vezes acontecem em Curitiba, no início do outono. São mágicas.
“Mas numa dessas manhãs de sábado absolutamente perfeitas, se eu me atirar do alto de um edifício, desenharei no espaço um movimento puro e sorverei a manhã em grandes haustos.” (do conto Em uso, de Rachel Jardim, p. 143)
– “Haustos”, “movimento puro” – tragicamente lindo.
“E eu fico imaginando que a coisa melhor do mundo é ter dezoito anos e mergulhar na vida e sonhar com o futuro a dois: uma sala na penumbra, um disco do João Gilberto, mãos dadas, palavras carinhosas, as mesmas de sempre, gestos carinhosos, os mesmos de sempre, silêncio, sorrisos, felicidade.” (do conto A coisa melhor do mundo, de Vivina de Assis Viana, p. 164)
– Sim, é. E fora que a bossa-nova ensinou o mundo inteiro a namorar.
revisto por Mayra Corrêa e Castro © 2014
STEEN, Edla van (organizadora). O conto da mulher brasileira. São Paulo: Global, 2007, 3ª edição.