Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > contos > O Cavaleiro Inexistente – Ítalo Calvino
Ô conto bom pra caramba: a história de um cavaleiro que, sem existir, tem consciência de tudo; de um louco que, existindo, não tem consciência de nada; de uma amazonas que depois de ter dado para todo mundo quer dar ao único que não pode receber; e de dois aspirantes, que cavaleiros se fazem, um casando-se com quem antes não podia se casar e outro comendo aquela que antes não pensava em lhe dar. Hahaha. Ótima história! Leia.
Eu já li, leio e continuarei lendo tudo que gire em volta do tema Ciclo Arturiano, mesmo que apenas referências e citações. Esta paixonite iniciou na faculdade. Mas hoje está em estado crônico, desenganada mesmo depois de fortes terapias à base de correntes literárias mais sérias, politizadas e esquerdistas. Aliás, tendo a achar que este tipo de terapia trouxe um efeito rebote à minha paixonose: gosto ainda mais de novelas de cavalaria depois de ter lido um bom punhado de autores norte e latino americanos.
Trechos que achei mais líricos:
Este trecho é de quando Carlos Magno passa em revista seus cavaleiros. Todos deveriam levantar a viseira e dizer ao imperador seu nome, feitos de campanha e quantos soldados lideravam. Agilulfo, que é o cavaleiro inexistente, hesita entre levantar ou não a viseira do seu elmo diante de Carlos Magno:
“Agilulfo pareceu hesitar um momento, depois com mão firme e lenta ergueu a viseira. Vazia o elmo. Na armadura branca com penacho iridescente não havia ninguém.
– Ora, ora! Cada uma que se vê! – disse Carlos Magno. – E como é que está servindo, se não existe?
– Com força de vontade – respondeu Agilulfo – e fé em nossa santa causa!
– Certo, muito certo, bem explicado, é assim que se cumpre o próprio dever. Bom, para alguém que não existe está em excelente forma!
Agilulfo era o último da fila. O imperador terminara a revista; girou o cavalo e afastou-se rumo ao acampamento real. Já velho, tendia a eliminar da mente as questões complicadas.” (p. 10)
Eu acho esta passagem do conto de uma genialidade só! Primeiro porque está bem escrito, e aqui temos que bater palmas ao tradutor; depois, porque Calvino escolhe retratar Carlos Magno na velhice – quem teve ideia semelhante, por Deus?!; terceiro porque contrapõe fé e materialismo num curto diálogo, com uma perspicácia deliciosamente cínica. Vivas a Calvino!
***
Aqui o narrador descreve os modos de um louco que mimetiza qualquer aspecto da natureza com o qual interaja. Se ele come sopa num prato, se comporta como a sopa, depois como se fosse o prato; se dá comida aos patos, acaba por se comportar como os patos, depois como se fosse a comida. Leia:
“A cavalgada ladeava um pomar de pereiras. Os frutos estavam maduros. […]Enfileirado entre as pereiras, quem se vê? Gurdulu-Omobó. Mantinha os braços para cima, torcidos feito ramos, e nas mãos, na boca, na cabeça e nos rasgões da roupa carregava peras.
– Olhem, ele está bancando uma pereira! – exclamava Carlos Magno, risonho.
– Já vou sacudi-lo! – disse Orlando, e deu-lhe uma pancada.
Gurdulu deixou cair ao mesmo tempo todas as peras, que rolaram pelo prado em declive, e ao vê-las descer não pôde fazer outra coisa senão rolar também ele feito pera no relvado e assim desapareceu da vista de todos.
[…]
– Mas que parafuso falta a esse louco a quem vocês chamam de Martinzul? – perguntou, afável, o nosso imperador. – Parece-me que nem sabe o que lhe passa pela moleira!
– Que podemos saber nós, Majestade? – O velho hortelão falava com a modesta sabedoria de quem já viu de tudo. – Talvez não se possa chamá-lo de doido: é só alguém que existe mas não tem consciência disso.
– Boa esta! Aqui temos um súdito que existe mas não tem consciência disso e aquele meu paladino que tem consciência de existir mas de fato não existe. Fazem uma bela dupla, é o que lhes digo!”
A gente lê este trecho e dá de cara com o parágrafo seguinte em que Carlos Magno, cansado, desce de seu cavalo e conclui:
“Pobre França!” (p. 26)
Pode haver conclusão de parágrafo mais engraçada que esta? E o que é o Orlando puxando o saco do imperador?! Fora a descrição do doido, que é lírica, e a sagaz observação de Carlos Magno sobre a dupla Agilulfo e o doido Gurdulu, que me lembra demais as construções frasísticas de Machado de Assis. Este trecho me arrebatou!
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Outro trecho maravilhoso do livro, em que o narrador, que é uma freirinha, conta-nos porque e como imaginou contar a história do cavaleiro inexistente:
“Esta história que comecei a escrever é ainda mais difícil do que havia pensado. Acontece que me cabe representar a maior loucura dos mortais, a paixão amorosa, da qual o voto, o claustro e o pudor natural até aqui me protegeram. Não digo que não tenha ouvido falar disso: pelo contrário, no mosteiro, para manter-nos afastadas das tentações, às vezes se discute a questão, da maneira que podemos fazê-lo com a vaga ideia que temos sobre ela, e isso ocorre, sobretudo, cada vez que uma de nós, coitadinha, por inexperiência, fica grávida ou então, raptada por algum poderoso não temente a Deus, volta e nos conta tudo o que lhe fizeram. Assim, tanto sobre o amor como sobre a guerra, direi de boa vontade aquilo que consigo imaginar: a arte de escrever histórias consiste em saber extrair daquele nada que se entendeu da vida todo o resto; mas, concluída a página, retoma-se a vida, e nos damos conta de que aquilo que sabíamos é realmente nada.” (p. 53)
Não conheço nenhum bom livro que não aborde em menor ou maior parágrafo o ato de escrever. E o que é este parágrafo quase-confissão? dito num folegozinho só como se a freira estivesse mesmo aos pés de Jesus Cristinho contando-lhe de forma sapeca seus pecados sabendo que, afinal, não são pecados tão pecadísticos assim! Lírico, lírico, lírico. Amei!
(Se compartilhar, por favor, cite a fonte. É algo simpático e eu fico agradecida.)