Mercados Radicais – Eric Posner e Glen Weyl
Postado às 17:33 do dia 21/07/19
Há vários tipos de ficção científica, mas elas sempre envolvem máquinas, tecnologia e futuro. Julio Verne, um de meus autores preferidos, é considerado o pai do gênero. Entretanto, quando penso em Viagem ao Centro da Terra, entendo que o gênero engloba muitas nuances. Uma nova nuance é esta de Mercados Radicais: a ficção científica econômica. Bom, sabemos o que ocorre com quem, no presente, prevê que uma ideia não pegará: a ideia pega e aquela pessoa passa pra história como burra e míope. No entanto, não uso o termo ficção científica como sinônimo de “algo que nunca acontecerá”, mas como sinônimo de uma ideia com grande carga tanto de imaginação, quanto de tecnologia. É disso que se trata o livro.
Mercados Radicais, de Eric. A. Posner e E. Glen Weyl.
O subtítulo dele aponta que seus autores, Eric A. Posner, professor de direito na Universidade de Chigado, e E. Glen Weyl, economista e pesquisador da Microsoft, querem propor fórmulas pra que a democracia, judiadíssima depois da vitória de Trump nos EUA, volte a ser aquela promessa boa de sociedade justa, igualitária e fraterna. Em nenhum momento se questiona a razoabilidade deste ideal, e sequer o do capitalismo ser o melhor candidato a promovê-lo. Não digo que uma democracia não deva perseguir este ideal – deve -, mas não se escrevem ficções sem tirar o pé da realidade. Mesmo distopias tiram o pé da realidade – exageram suas possibilidades mais sombrias. A realidade prática é que sempre há coisas boas e ruins acontecendo simultaneamente – nem tudo nas democracias capitalistas atuais é uma merda que deva ser consertado, nem tudo é tão belo que não mereça revisão nenhuma. Então, os pressupostos de Posner e Weyl pra “consertar” o capitalismo e a democracia são um tiquinho exagerados, ainda que, no final do livro, eles posem de os caras mais sensatos do mundo, mostrando como a natureza humana é incontrolável e como a melhor das soluções pode soçobrar ante o imponderável fator “gente”.
E quais são as soluções propostas? Todas elas são soluções tecnocratas, ou seja, soluções que, com a ajuda da tecnologia computacional e econômica, podem dar jeito nas distorções do mercado. Quer dizer: a ideia que subjaz é que o mercado deixou de funcionar – e por isso nossas democracias têm criado mais desigualdade. Os autores creem que a tecnologia computacional, hoje, é capaz de dar conta de tornar as regras de mercado radicalmente operantes, livres da apropriação que delas fizeram as elites burguesas do século XXI. Faz bastante sentido, realmente. Mas há algo no livro que nos deixa desconfiados, como quando olhamos um liberal exigindo isenção fiscal pra um setor econômico criar mais empregos, ou quando olhamos pra um socialista emprestando dinheiro público pra empresas privadas gerarem empregos.
Em certo momento, os autores dizem que, nos antigamentes, liberais eram chamados de socialistas, porque a finalidade do mercado era socializar o bem-estar e a riqueza, distribuindo-os. Talvez seja isso, este travo que fica na boca depois de ler o livro: a propriedade privada, sacrossanto dogma do liberalismo, se as propostas de Mercados Radicais forem implantadas, deixará de ser sua pra sempre, pra sempre estar à disposição da maior geração de riqueza que com ela for possível. Dá pra dizermos que, por uma das propostas do livro, ninguém mais será dono de nada – apenas estaremos donos por um tempo. Não haverá mais compra e venda – apenas locação e deslocação. É bastante estranho, é contra-intuitivo, é excêntrico. Também é curioso, porque este é o livro capitalista mais comunista que já li. Por isso eu o chamei de ficção científica: ele nos leva a uma sensibilidade desconhecida, a questionarmos algumas de nossas convicções. Sobretudo, ele questiona o quanto queremos, de fato, que democracias capitalistas deem certo pra todos e não apenas pra nossa patota.
As soluções tecnocratas que os autores propõem são estas:
- Leilões permanentes sobre a propriedade privada. Bom, neste cenário criado por Eric e Glen, não seria correto chamar de “privada” a propriedade, mas sim de “locada”. Seria desenvolvido um sistema, como aquele que já funciona pra vender espaços publicitários no Google e no Facebook, em que quem der mais leva o bem. Mas já não funciona desta forma? Não, porque hoje você pode querer comprar um bem pelo melhor preço, mas o dono pode não querer vendê-lo. Na proposta de Mercados Radicais, seria criado um tipo de imposto crescente sobre um bem que não gerasse valor à sociedade, de forma que seu proprietário como que seria obrigado a vendê-lo, a menos que quisesse arcar com impostos cada vez maiores. Os autores usam os termos “propriedade coletiva parcial”, “propriedade comum parcial” pro que eu estou chamando de propriedade locada: enquanto você puder fazer aquela propriedade render o máximo pra sociedade, você será dono dela. No dia em que não puder gerar o valor que a propriedade tem chance de gerar, ou você se lasca pagando um imposto alto pra mantê-la consigo, ou a passa pra frente. O livro detalha como funcionaria este imposto, nomeado de COST: common ownership self-assessed tax, ou “imposto autoavaliado sobre a propriedade comum”. É um imposto não sobre a riqueza, mas sobre a decisão de não a gerar. É um conceito que me pareceu elegante, embora eu não tenha entendido patavina da teoria econômica que o fundamentou. Se tiver curiosidade, leia o livro pra pescar melhor a ideia. E leia pra entender como algoritmos computacionais manterão este sistema de leilões e COST em funcionamento, pois os caras creem que um app de celular poderia dar conta do recado.
- Créditos de votação em pleitos políticos. De todas as ideias do livro, esta me pareceu a mais prontamente inteligível, a mais prontamente assimilável e intuitiva. Trata-se da implementação de algo que todo mundo sente: se eu não entendo nada de aquecimento global, mas sou um especialista em educação infantil, faz mais sentido eu opinar em educação infantil que em aquecimento global. Entretanto, hoje, seja como eleitores, seja como legisladores, somos obrigados a opinar em tudo – e isso nos traz aqueles resultados de praxe que é termos um deputado votando lindamente em questões econômicas, mas sendo um asno em políticas ambientais. Ou um eleitor que consegue enxergar como seu candidato é bom em administração pública, mas é míope pra ver como o candidato é uma anta em políticas identitárias. A ideia por trás dos créditos de votação é que a gente pare de ter apenas 1 voto do tipo canhão, e passe a ter 1 centena de votinhos do tipo bala. Assim, todo eleitor (e todo legislador) ganharia uma cota de créditos pra votar. Digamos que você ganhe 100 créditos pra votar. Então o Congresso pede que o cidadão vote em duas questões: privatização da Petrobrás e ampliação do Bolsa Família. Se você for mais sensível à ampliação do Bolsa Família e for menos sensível à privatização da Petrobrás, você não consegue, com nosso sistema atual, expressar isso pois lhe deram apenas 1 voto. Mas digamos que você possa distribuir, da sua cota de 100 votos, 80 votos a favor da ampliação do Bolsa Família, e 20 votos contra a privatização da Petrobrás. Parece legal, porque você gostaria muito mais de ser ouvido na questão do Bolsa Família, que na questão da Petrobrás. A ideia dos autores é mais sofisticada que isso, envolve uma cálculo de uma raiz quadrada qualquer (“votação quadrática“), mas o grosso é como expliquei. Como eu disse, de tudo que o Mercados Radicais traz, pra mim esta realmente é uma ideia genial e eu estaria pronta a aderir a ela neste exato momento. No nosso dia a dia, a gente não tem opinião formada pra tudo. Mas a gente adoraria ser ouvido e fazer nossa opinião ter força nas questões mais importantes pra nós. É isso que o sistema de créditos de votos faria. Os autores chamam créditos de votos de “créditos de opinião” e creem que eles possam ser usados em todos os âmbitos da representação democrática. Obviamente eu fiquei imaginando um mercado negro de créditos de opinião, suborno, etc, mas me parece que seria melhor um mercado negro sobre um sistema de créditos de opinião que sobre o único voto per capita que temos hoje.
- Mercado de vistos de imigração. Taí outra ideia interessante do livro, embora ela pareça, digamos, desumana: precificar o que deveria ser livre, que é o trânsito de pessoas pra qualquer parte do planeta. A pressão imigratória está no cerne da crise do estado de bem-estar social da Europa e no recrudescimento da direita-carne-de-pescoço dos EUA. Os autores propõem que cidadãos de países ricos banquem o visto de trabalho de imigrantes de países pobres, ganhando parte dos rendimentos dos mesmos. Ouvir essa proposta traz aquele déja vu de imigrantes que chegaram ao Brasil e nunca conseguiram deixar a pobreza porque ganhavam salário do mesmo empregador que lhes vendia mantimentos no mercadinho da cidade. Evidentemente, os autores estiveram atentos a isso e previram mecanismos compensatórios pra que o mercado de visto de imigração não degringole pra trabalho análogo à escravidão. Confesso que li sem grandes pretensões de entender o assunto, pois a questão imigratória não nos atinge, no Brasil (bom, ainda não nos atinge), como atinge países lá fora. Nem somos um país que atrai tantos imigrantes, nem vivemos em situação que nos obriga a sair daqui.
- Restrição a 1% de participação de investidores institucionais em várias empresas de um mesmo segmento. Aqui a coisa é bem simples: hoje, todos sabemos que grandes fundos são donos de pequenos percentuais de ações em TODAS as companhias de determinado setor. É tão simples você dominar o mercado assim, que fica aquela dúvida de como as leis anti-trustes não previram que ter 5% de ações de todas as empresas de um setor confere o mesmo poder a investidores que ter 80% de um setor através de um monopólio ou duopólio. O livro traz uma solução pra isso. Traz também o conceito de monopsônio aplicado à força de trabalho: quando um setor é dominado por pequenas participações de uma meia-dúzia de grandes empresas, elas determinam quão (pouco) aquele setor paga em termos de salários. Sabemos que isso ocorre: nenhum banco paga bem pra um caixa ou um gerente porque, oras, lá em cima os donos combinam entre si como os salários devem ser. Um dos grandes problemas de hoje é que a concentração de mercado por investidores institucionais tornou o capitalismo inexistente pro 1% da população mais rica – que o controla -, mas tornou o capitalismo uma selva pros 99% da população mais pobre, que acha que vive num mundo onde a competitividade entre empresas gera preços mais baixos e salários mais altos.
- Remuneração pelo big data que geramos enquanto usuários da internet. Ah, sim, a internet – este repositório de relações humanas acusado de ser o flagelo da democracia, da liberdade e da igualdade. A internet começou grátis. Bom, não o acesso a ela, que até hoje é bastante caro e obriga 100 milhões de brasileiros serem sem-internet. Os serviços na internet é que começaram grátis – e continuam grátis: mesmo quando pagos, são do tipo freemium – começa de graça e depois você paga pra usar tudo que ele oferece. Mas a humanidade conectada não precisou nem de uma década sequer pra sacar que, assim como na vida, na internet “não tem almoço grátis”. Você usa meu appzinho manero, envelhece sua fotinho, posta no Instagram, e eu recolho seus dados virtuais todos e os vendo pra uma Cambridge Analytica qualquer, ou os uso pra me tornar uma Amazon. Em Mercados Radicais, a proposta é que a desigualdade trazida por sairmos de uma economia industrial pra uma economia digital seja solucionada com a remuneração do tempo que passamos na internet deixando nossos rastros em redes sociais, em sites de compra e de busca. Os autores mostram que o custo do AA – Aprendizado Automático é alto quando os dados mais relevantes são escassos na geração de IA – Inteligência Artificial. Uma vez que determinado processo tenha sido aprendido pela máquina, os dados apenas refinam algo que já foi aprendido – e isso tem um custo muito baixo. Então, o que propõem é que as pessoas recebam dinheiro pra gerar os dados relevantes. Essa sugestão não casa com nossas arcaicas, insanas e obtusas leis trabalhistas. Receber por ficar na internet todo mundo quer, mas mexer nas leis trabalhistas, menos pessoas querem. O livro costura bem o que seria uma visão nova sobre o trabalho quando computadores decidirem o que comeremos no almoço em função do que quantas horas passadas na frente do micro representam em termos de probabilidade de refluxo esofágico. Vale uma leitura, pois é a parte com maior pegada de futurologia de toda a obra.
Nestas minhas resenhas de As Melhores Partes…, gosto muito de trazer citações do livro e comentá-las, mas ficaria extenso demais hoje. Há uma citação, entretanto, tirada das páginas finais, que tem aquela qualidade de poder ser usada, com ironia, pra reclamarmos dos millenials, passatempo que nós, da geração X, adotamos num domingo à tarde. (Minha mãe, baby boomer, diria que é o passatempo dela em relação à minha geração X.) Segue:
“O que poderia sair errado [na implantação de nossas sugestões]? Uma possibilidade é que as pessoas não consigam lidar com a carga adicional que esses esquemas lhes imporiam. Todos eles, de uma maneira ou outra, exigem que as pessoas dediquem mais reflexão a atividades a que hoje nem prestam atenção ou consideram como coisas dadas. Essa é uma consequência natural da extensão dos mercados, tão diferente da passividade com que as pessoas encaram a burocracia estatal ou empresarial. É um chavão dizer que a liberdade implica responsabilidade; aumentando a liberdade, nossas propostas também aumentam a ação pessoal e a responsabilidade.
“Mas não devemos temer o peso dessa responsabilidade. Afinal, vivemos na era da intermediação computadorizada. Como expusemos em capítulos anteriores, muitas das decisões podem ser automatizadas. E as próprias instituições podem ser concebidas para colocar um peso cognitivo maior ou menor nas pessoas que as utilizam. Esse problema nos é familiar com os mercados e as instituições governamentais existentes, que passam por ajustes constantes aumentando ou reduzindo a carga cognitiva. A introdução de uma Previdência Social, por exemplo, facilitou muito a vida para pessoas que não precisavam mais se preocupar em calcular as poupanças para a aposentadoria. (…) ” (p. 279-280)
– Não sei quanto a você, mas eu não tinha ainda ouvido falar em carga cognitiva, em peso cognitivo pra explicar por que projetos sensatos fracassam (ok, já li Kahneman): porque impõem mais liberdade às pessoas e, com isso, obrigam-nas a pensar de forma autônoma e com responsabilidade. Quando chamamos esta geração de “geração mi-mi-mi”, é um pouco isso que criticamos: uma certa preguiça cognitiva de quem tem todo tipo de informação na ponta dos dedos, muito diferente de nós que tínhamos que ir pra uma biblioteca, abrir trocentos livros até achar a informação necessária e que, no jornal da noite, ouvíamos alarmados que a União Soviética ou os EUA poderiam estourar uma nova bomba nuclear em nosso quintal. Ter um Estado que provê, ter uma democracia que dá conta do sofrimento (inerente), ter pessoas que tomem as grandes decisões por você pra que você possa andar de bicicleta pela ciclovia até seu trabalho numa cafeteria artesanal, possa ter tempo de cozinhar seu próprio brócolis orgânico pra sua marmita de almoço, é um pouco de preguiça cognitiva. Os autores falam em um COST pra não-geração de riqueza. A não-geração de riqueza também se aplica à preguiça cognitiva: quem se recusa a pensar, querendo que alguém (normalmente, o Estado) tome conta de seu bem-estar, também deveria ser multado com o COST. Não existe felicidade sem gasto de fosfato. É o que fazemos, nós, humanos: pensamos. Recusar-se a pensar, querer que alguém tome as decisões por você (obrigatoriamente as decisões que você acha certas), é bem mimado, na verdade, ainda mais considerando que os mais bem treinados a pensar – nós, os bem nascidos, os bem educados e os bem alimentados da classe média branca – querem que pensem por eles pra terem mais tempo de ser felizes. Desejar uma felicidade sem COST pode ser a maneira como as democracias ampliaram a desigualdade. PENSE nisso.
Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2019
POSNER, Eric A.; WEYL, E. Glen. Mercados radicais: reinventando o capitalismo e a democracia para uma sociedade justa. Tradução de Denise Bottman. – 1ª ed. – São Paulo: Protfolio-Penguin, 2019.