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Mal comportadas línguas – Sírio Possenti

Postado às 15:00 do dia 22/08/12

Em 1992, cerca de 35 calouros de Letras e Linguística da UNICAMP tomavam seus lugares para a aula inaugural do curso. Tudo era estranho naquele momento: a sala, a segunda do banheiro para a esquerda, que tinha apenas carteiras universitárias mal conservadas e janelas sem cortinado; os rostos, que traziam feições dos vários cantos do Brasil, de Curitiba a Salvador; o professor, um sujeito com cabelos compridos e uma rala carequinha no alto; o tema, preconceito linguístico.

Era realmente nossa primeira aula e, tomados daquele orgulho besta de termos passado no vestibular de uma das melhores universidades públicas do país, pensávamos que ninguém poderia nos ensinar nada sobre gramática. Afinal, exatamente porque escrevíamos bem é que estávamos ali.

Então Sírio, o professor, começou explicando que a gente deveria esquecer tudo que sabíamos sobre português. E disse mais, querendo nos provocar mesmo, que em seus anos como corretor de redação nos vestibulares viu, frequentemente, mais conhecimento sobre o português naquelas redações nota zero do que nas com nota alta. Exemplificou:

– Peguem a palavra sexo. – Daí, tomando um giz de cera, escreveu na lousa: “séquis-so”, separado, dizendo que a palavra tinha aparecido, numa redação, no final da linha. Todos riram, ele continuou tranquilo:

– Me digam: quanto que este aluno sabe de português? – ninguém quis responder, apesar de uns estarem visivelmente incomodados e outros estarem se divertindo. Eu estava no último grupo, animadíssima com o desenvolvimento do raciocínio. Sírio disse:

– Vamos lá! Primeiro acerto: ele sabe que o “q” exige a vogal “u” antes de um “i”; segundo acerto: ele sabe que se separam dois “s” no final da linha; finalmente, terceiro acerto: ele sabe que toda palavra proparoxítona leva acento no português!

Rimos a valer e uns de nós ainda aplaudiram. Mas Sírio estava impossível naquele dia, a sua preleção não terminou:

– Vocês acham que é preciso ensinar português a falantes nativos? Vou lhes contar uma piada – e nos contou. Ao meu lado, o calouro Waltencir Alves de Oliveira, meu primeiro amigo na faculdade e melhor amigo até hoje, uma das cabeças mais brilhantes daquela turma, me contou ao pé do ouvido que o Sírio tinha feito sua pós em piadas. Olhei com espanto para o professor, mas entendi porque ele tinha um repertório tão bom. Depois de nos ter feito gargalhar com umas três, fez a pergunta:

– E então?

Silêncio.

– Então que prova de português tinha que ser assim: você conta uma piada na sala, quem ri ganha 10; reprova quem não riu.

Ali estava a principal lição que Sírio queria incucar nos estreantes do curso: não se ensina português a quem nasce falando português. O que as pessoas acham que estão ensinando nas escolas é algo que se chama norma culta – e nem isso estão ensinando, entre outras razões, porque a norma culta é algo mutante, que está mudando neste instante em que escrevo o texto. O que Sírio nos ensinou – acho que com sucesso a uns e com um pouco mais de insistência a outros – é que, no tocante à lingua, agimos com muito preconceito, um preconceito que não tem nada a ver com ela, mas com fatores sociais e econômicos. Por isso, na UNICAMP, ele explicava, o curso se chamava Letras e Linguística: todos teriam de ter uma base em linguística para estudar letras. Apenas a partir do terceiro ano os cursos se separariam. Não sei se ainda é assim lá dentro. A UNICAMP, me dizem, mudou muito daqueles heroicos anos 90 pra cá.

Eu tomei o rumo da linguística. A aula inaugural do Sírio me seduziu desde o início, e depois foram as aulas de sintaxe chomskyana, a fonética de línguas indígenas, as oficinas de tradução, a gramática do português falado e até a análise do grampo telefônico do ministro do Collor. Me formei em linguística em 1995; eu e mais 3 meninas contra uns 20 que se formaram em letras. Linguística não era uma matéria sedutora. Acho que ainda não é, mas as crônicas que Sírio escreveu para o Jornal de Jundiaí, SP, e que formam este livro Mal Comportadas Línguas, o são. Abaixo trago os melhores trechos.

 

 

da crônica Saber Escrever, Saber Ler

“Uma coisa é escrever uma palavra erradamente, outra coisa é transformar uma palavra em outra. Se se pode dizer que alguém que escreve ‘por de novo em sua vida’ sem colocar um acento no verbo não sabe escrever, é ainda mais verdade que quem acha que o verbo virou preposição não sabe ler.” (p. 14)

– Nas colunas que manteve no Jornal de Jundiaí, numa época em que o prof. Pasquale dava suas aulas de português na TV Cultura, Sírio criticava a pasmacice da imprensa em apontar erros de ortografia que políticos e celebridades cometiam, como se isso fosse prova de alguma coisa falha em suas formações. Sírio sempre disse que não devemos culpar os falantes pelos erros de ortografia, mas o sistema de educação do país. E mais: não saber escrever é muito menos pior que não saber ler.

 

 

da crônica Sem Estrondo

“Todos sabem que as línguas mudam. Claro que é mais fácil aceitar uma mudança antiga do que uma que ocorra diante de nossos olhos. Ninguém reclama de a palavra ‘muliere’ ter se tornado a palavra ‘mulher’, de a palavra ‘ecclesia’ ter mudado para ‘igreja’, mas acha o fim da picada a hipótese de a palavra ‘mulher’ mudar para ‘muié’, ou se a palavra ‘classe’ mudar para ‘crasse’.” (p. 27)

– Creio também que nossos alunos seriam escritores mais inteligentes se aprendessem a enxergar as mudanças– e usá-las conforme o caso – e compreendessem sua lógica do que se ficássemos discutindo se um livro didático que o governo comprou incentiva o mau uso do português ou não.

 

 

da crônica O Drama da Escrita

“O fracasso dos alunos em provas que exigem escrita não é só o fracasso da escola, mas o de uma sociedade que valoriza o que tem pouco valor – escrever corretamente sempre as mesmas palavras e frases de gramática – e não valoriza o que tem muito valor – a capacidade de alguém ser sujeito de um texto, de defender ideias que se articulem, mesmo que haja pequenos problemas de escrita.” (p. 55-56)

– Toda vez que eu quero explicar a diferença entre gramática e linguística, eu apelo pra uma metáfora: imagine Antia Malffati voltando dos Estados Unidos e fazendo sua primeira exposição com quadros modernos em São Paulo, onde apresentou aquela tela O Homem Amarelo, que encantou (apenas) a Mario de Andrade. As pessoas acharam que se tratava de um quadro feio porque Anita não usava a mesma técnica de pintura que a elite julgava correta para se pintarem quadros. Apenas uma pessoa – Mario de Andrade – soube ver, no quadro, um modo de funcionar inédito dentro da pintura. Pois bem. As pessoas que acharam o quadro feio o olharam como se fosse um desrespeito à gramática; Mario de Andrade o olhou com um profundo interesse e admiração, como se fosse um fenômeno da linguística. Entendeu?

 

 

da crônica Comunicar e Trumbicar

“Melhor seria aprender várias línguas de forma eficiente – as criancinhas, na pré-escola, ao invés de amassar barro e amarrar cardaços, poderiam ser expostas a outras línguas. Aprenderiam várias em pouco tempo.” (p. 57)

– Investidores deste Brasil: há, pra este tipo de negócio, tanto pessoal, quanto público. Quem abre a carteira?

 

 

da crônica Prêmio Santa Clara

“Em algum lugar eu disse – e repetiria – que a melhor coisa que se pode fazer em termos de reforma ortográfica é uma reforma agrária.” (p. 67)

– Adoro as ideias do Sírio! Bem, a reforma já foi feita, mas não com reforma agrária, e sim com reformas administrativas que renderam inúmeros contratos de reimpressão entre governos e editoras e gráficas. No final, a causa e a solução sempre são de ordem econômica.

 

 

da crônica O Cartaz do Pitta

“Sempre achei que os que sentem necessidade de corrigir os textos dos outros são leitores pobres. Só sabem ler teleguiados pelas famosas regrinhas.” (p. 101)

– É isso aí!

 

revisto por Mayra Corrêa e Castro ® 2012

 

POSSENTI, Sírio. Mal comportadas línguas. Curitiba: Criar Edições, 2000.

 

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