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Dias raros – João Anzanello Carrascoza

Postado às 11:00 do dia 08/10/12

Editado pela Planeta em 2004, este livro com 10 contos do escritor, publicitário e professor universitário João Anzanello Carrascoza (1962) mereceu uma orelha e tanto escrita por Cristóvão Tezza, que elogiou o livro como “delicada prosa”. De fato! Debruçado sobre temas que veio a trabalhar novamente em seu último livro, Aquela Água Toda (2012) – a saber, as relações familiares, permeadas, na maior parte das vezes, pelas lembranças da infância – , Dias Raros emociona.

Alguns contos dão vontade de serem lidos ao lado da mãe, do pai, do irmão, da primeira namorada, como que para pedirmos desculpas de que o passado que tivemos juntos seja o melhor presente que podemos lhes dar no momento. Nesse passado, o que sentimos, mesmo quando os contos são narrados pela boca de uma criança, de uma mulher, é a voz do escritor querendo resgatar o instante mágico. Não que sejam, sempre, instantes alegres. Existe uma certa dor nessa voz, que alerta que a magia é uma emoção híbrida: o encontro da inocência com a maturidade.

Dos contos do volume, quero destacar três: Umbilical, que trata de um momento na vida de uma mãe com um filho que não consegue emprego, narrado com vozes que se prendem uma na outra, até o instante em que mãe e filho se contemplam, de novo, como recém-nascidos. É, para mim, o melhor conto do livro e um dos mais lindos que já li até hoje. Me levou às lágrimas nas três vezes que o li; Janelas, que trata do reencontro de irmãos que, agora adultos, pouco se veem; e Dias Raros, outro conto que me fez chorar, que fala das férias de um garoto na casa da avó que antes ele só via em rápidas visitas.

Recomendo que você leia o livro. O jeito de João contar esses instantes mágicos é como uma música que vai envolvendo a armadura rígida com que nos entregamos à luta do dia-a-dia até que, num sopro, sem trauma, sem perceber, a armadura voa pelo céu e sua pele fica aquecida pelos acordes.

Abaixo transcrevo alguns trechos favoritos.

 

 

do conto Cidade-Mundo

“Saíram ainda escuro, a manhã hesitava, uns cheiros de dia novo pairavam no ar, e o menino se ria, no feliz de fazer uma viagem, coisa mínima para a maioria, ir de um aqui e um ali, costurar as margens de cá às do lá, mas para ele a raridade que raiava.” (p. 9)

– Quero comentar que João nasceu em Cravinhos, no interior do estado de São Paulo, e um dia foi para capital. O tema da viagem para uma cidade maior (ou para a praia) reaparece em outros momentos e se constitui em oportunidade para mostrar que não são os lugares que nos encantam, mas sim os olhos, que os veem, quando ainda são olhos encantados. O parágrafo acima tem ritmo de passarinho que está aprendendo a bater asas, aprendendo a piar. Uma coisa doce, por isso quis transcrevê-lo.

“E quando viu de novo, porque nuns instantes ficou a ver não vendo, como quem lê a página de um livro sem se apegar às palavras – e aí se deixou no depressa-devagar da imaginação – , quando viu, estavam num pátio comprido onde os ônibus barulhavam (…)” (p. 11)

– O trecho se refere a um menino que se surpreende com a cidade grande através da janela de um ônibus de viagem chegando na rodoviária. Não existe nem um pingo de afetação no jeito como João brinca com as palavras. É uma criança que fica feliz com o brinquedo – porque é brinquedo – , e não porque o brinquedo é caro.

“Até que, de súbito, desaguaram numa rua estreita, alagada de calma (…)” (p. 12)

– Toda cidade tem dessas ruas, não tem?

“A prima, tão mais surpreendente a cidade nela.” (p. 15)

– Nossa, com quantas memórias de infância e de personagens de livros essa frase não conversa?

 

 

do conto Ponteiros

“Nos olhos da família, o desejo desperto, estavam prestes a saltar, por uma semana, das tarefas paras as delícias, que bem mereciam.” (p. 37)

“(…) as crianças quietas por fora, em gritaria por dentro, a manhã se desdobrando nos espaços.” (p. 37)

“E todos, nos dois veículos, ancoravam os olhos naquela sucessão de campos e cidades, ser era simplesmente ver, e eles eram o que eram, vendo o que viam: o céu, de um azul vivo, abrindo-se acima de suas cabeças, o sol a derramar-se pelo asfalto.” (p. 40-41)

– Adoro as sentenças “das tarefas para as delícias”, “quietas por fora, em gritaria por dentro”, e “ser era simplesmente ver”. Esse conto fala da viagem para passar uns dias na praia. As duas primeiras sentenças sãs as paisagens em vai-e-vem na serra do mar, a última é quando a praia se faz horizontal, pela primeira vez, da janela do carro.

 

 

do conto Rosa do deserto

“Falamos algumas frivolidades, um tateando o mistério do outro, tentando as várias chaves em busca daquela que nos abriria inteiramente, e parecíamos saber a hora de silenciar nossas grandezas e vazar nossas insignificâncias.” (p. 48)

“Senti que a conhecia desde a noite dos tempos, ela possuía a costela que me fora arrancada, era finalmente a possibilidade, entre milhões, reservada a mim no jogo das paixões.” (p. 48-49)

“E então a via na casa em que teríamos, recolhendo do varal as nossas manhãs de amor (…)” (p. 50)

– Meu caro, se você ainda chama sua mulher de tchutchuca, vai ler pra aprender a namorar, tá?

 

 

do conto Além dos Trilhos

“Então, a menina distante daquela fronteira, os trilhos, agarrada a seu medo – como as raízes da árvore à terra no fundo do quintal – , quieta naquela casa, entre tantas outras, já entregue ao exercício feminino de gerar, embora, por ser quem era, gerava tão somente sonhos, treinando para um dia engendrar vidas, e, assim, ia progredindo dentro de seus escuros um clarão – o seu ser de amanhã.” (p. 6-67)

– Lindo jeito de descrever o amanhã de uma mulher.

“O sol inundava de luz a periferia – casas além e aquém da linha férrea, ruas ruentas e mudas, quintais apassarinhados e desertos.” (p. 72-73)

– É curioso pensar que uma cidade é mais cidade quando despida de gente.

 

 

do conto Dias Raros

“Deu-se, enfim, a hora dele e da avó. Ia começar a eternidade. Ela, ciente de seus sentimentos, não o mirava com imensidão, mas miudamente, disfarçando, como se não visse o seu desencanto. E, já que o menino não escolhera estar ali, ela quis lhe oferecer outras alternativas, a cor da toalha de banho, Azul ou verde?, a cama onde dormiria, A de solteiro ou a de casal, comigo?, o lanche de tarde, Pipoca ou cachorro-quente?, e o neto nas suas preferências, menos triste, mas ainda remoto. Decidiu deixá-lo em seus silêncios. Estou lá no quintal, ela disse, e saiu pela porta da cozinha.” (p. 97-98)

– De repente me veio a ideia de que casa de avô não é tão bom porque eles nos deixam fazer tudo, mas porque eles nos deixam, simplesmente. Filhos e pais têm obrigações; netos e avós precisam conquistar.

“Ao amanhecer, viu-se atrás da avó, para lá e para cá, sem notar que era tudo o que ela desejava e, no fundo, um jeito de ele mesmo desentristecer.” (p. 100)

– Você é mãe, você é pai e fica por vezes irritado com as crianças que não desgrudam nem por um minuto de você. Daí lê esse trecho e fica que nem besta. Filho ou filha – perdão.

 

 

revisto por Mayra Corrêa e Castro ® 2012

 

CARRASCOZA, João Anzanello. Dias raros. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2004.

Como o livro está esgotado, a solução é comprá-lo em sebo, ou então, ouvi-lo na versão audiobook.

 

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