Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > autoconhecimento > Comunicação não-violenta – Marshall B. Rosenberg
Eis um livro ao qual a gente volta várias vezes. É um best seller como também é um clássico nas técnicas de comunicação, relacionamentos interpessoais e resolução de conflitos. Milhares de pessoas se formam em CNV – Comunicação Não-Violenta todos os anos a partir de centros que ensinam a técnica criada pelo psicólogo Marshall B. Rosemberg (1934 – 2015). Com um trabalho hoje mundialmente reconhecido, a CNV iniciou a partir das experiência de Marshall em bairros pobres nos Estados Unidos, quando atuava mediando conflitos étnicos, raciais e sociais. Na base de suas observações, ele constatou que as pessoas não se falavam para se comunicar – o que envolve uma via de mão dupla – , mas para dominarem ou convencerem os outros com suas opiniões.
Então, entendendo que uma comunicação efetiva passaria pelo autoconhecimento e pela empatia, elaborou 4 componentes da CNV: observação, sentimento, necessidades e pedido. Expressar-se honestamente – sem inferir no interlocutor intenções a priori – seria capaz de gerar conversas satisfatórias e respostas comportamentais que deixariam todos contentes.
Quando se lê o livro, fica-se com a impressão de que é muito fácil. Afinal, lá está uma receita de bolo bastante compreensível, lá estão alguns diálogos mostrando a aplicação da CNV na prática. Ledo engano. Nada mais difícil do que transformar anos de condicionamento (e ressentimento) na maneira como nos dirigimos a outras pessoas. Passar do tipo de comunicação alienante – aquela que bloqueia a capacidade de compaixão do interlocutor – a uma comunicação compassiva exige não apenas vontade, mas o aprendizado de algumas habilidades que são mais comuns em consultórios de psicólogos como saber ouvir sem julgar, colocar em palavras o que se sente, identificar a raiz de nossos incômodos e do que precisamos exatamente.
A CNV está em todos os ambientes corporativos onde as chamadas soft skills são requisitadas: em processos de coach, em técnicas de negociação, no “empreendedorismo de palco”, no treino de pitches e até mesmo na identificação das “dores” (acho este termo a coisa mais brega do mundo) que o mercado de start ups busca aliviar. O fato de se querer aplicar a CNV e as redes sociais continuarem sendo esta terra de ninguém apenas prova que entre a teoria e a prática existe um abismo – e que nos comunicarmos efetivamente é fácil quando sabemos que isto nos ajudará a ter sucesso profissional, mas bem mais difícil quando a recompensa é “apenas” a paz no mundo.
Seguem alguns trechos com comentários.
DAR E RECEBER
“Quando nos entregamos de coração, nossos atos brotam da alegria que surge e resplandece sempre que enriquecemos de boa vontade a vida de outra pessoa. Isso beneficia tanto quem doa quanto quem recebe. Este último aprecia o presente sem se preocupar com as consequências que acompanham o que foi dado por medo, culpa, vergonha ou desejo de lucrar alguma coisa. Quem doa se beneficia daquele reforço de auto-estima que se produz sempre que vemos nossos esforços contribuírem para o bem-estar de alguém.” (p. 24)
– Há muitos tipos de trabalho voluntário. Como fui criada em colégio católico, cresci considerando que apenas o trabalho voluntário feito aos pobres existia. Embora possamos discutir o valor de diferentes tipos de trabalho voluntário, o fato é que nem todos têm afinidade pelo trabalho voluntário humanitário. E a crença de que apenas este tenha valor afasta, penso eu, muitos brasileiros do voluntariado. A doação de nosso tempo e outros recursos pode enriquecer a vida de diversas formas: podemos ser voluntários pela promoção da arte, do empreendedorismo, podemos ser voluntários em entidades que fiscalizam o governo, em associações de categorias profissionais, podemos nos voluntariar na promoção de causas como a do vegetarianismo, do cosmético verde, do ciclismo etc. A mensagem é: encontre algo com que tenha afinidade, e experimente esta sensação de doação que faz nosso coração alegre e você entenderá o que Marshall fala. O voluntariado nos ajuda muito no caminho da entrega que a CNV requer.
COMUNICAÇÃO ALIENANTE
“Um tipo de comunicação alienante da vida é o uso de julgamentos moralizadores que subentendem uma natureza errada ou maligna nas pessoas que não agem em consonância com nossos valores. […] Culpa, insulto, depreciação, rotulação, crítica, comparação e diagnósticos são todos formas de julgamento.” (p. 37)
– Ao final das eleições presidenciais de 2018 eu estava abatida. Mas eu não me abati devido ao resultado das eleições pois, depois dos 45 anos, se a gente se abater por política é porque ainda não saiu da adolescência. A razão de meu abatimento foi porque percebi como eu não conseguia demonstrar aos meus alunos o quanto eles se apartavam do fazer terapêutico em suas interações sociais quando estavam se confrontando com pessoas do outro espectro político. Talvez por ingenuidade, não consigo dissociar o que eu faço profissionalmente – cuidar do sofrimento das pessoas – de quem eu sou. Não consigo ser terapeuta dentro do consultório e, ao sair do consultório, simplesmente largar todo o treino que tenho para não julgar meus interagentes e sair xingando as pessoas por suas escolhas eleitorais. Então, naquele 2018, me percebi falhando miseravelmente no meu papel de formadora de terapeutas porque via, em sala de aula, meus alunos todos cândidos na busca da compreensão da miséria humana e, fora da sala de aula, cancelando-se mutuamente porque um votaria no Haddah e outro no Bolsonaro. No final daquele ano, foi por muito pouco que eu não parei de ensinar aromaterapia por ter perdido a fé na minha capacidade de ensinar a habilidade mais básica de todo e qualquer tipo de terapeuta: olhar pro sofrimento que está além das palavras e do comportamento que as pessoas expressam. Num dia em que eu estava particularmente desesperançosa, escrevi pelo whatsapp a uma colega psicóloga e lhe disse: preciso agendar uma consulta ou daqui a pouco vou mandar meus alunos todos à merda, sair de todas as redes sociais e dizer que nunca mais ensinarei aromaterapia a ninguém. Ela me ligou na mesma hora e passamos uma longa hora conversamos sobre meus sentimentos e necessidades e uma coisa ficou pateticamente clara: eu estava querendo que meus alunos sentissem vergonha ou culpa de agir da forma intolerante como agiam e, como Marshall explica, culpa e vergonha nunca são motivos suficientes pra alguém nos ouvir.
“Todos pagam caro quando as pessoas reagem a nossos valores e necessidades não pelo desejo de se entregar de coração, mas por medo, culpa ou vergonha. Cedo ou tarde, sofreremos as consequências da diminuição da boa vontade daqueles que se submetem a nossos valores pela coerção que vem de fora ou de dentro.” (p. 39)
– A CNV não passaria em um teste que medisse o quão progressista suas ideias são, o que aderentes às pautas das liberdades positivas ela é. Pelo menos é minha desconfiança. Isto porque a discussão hoje em dia é sobre “a obrigação de aceitar o outro”, em vez de sobre “a aceitação do outro”. A CNV é realista: o ser humano se ressente quando tentam lhe impor o que que vem de fora. E, sabemos, entender o ser humano como restrito é o avesso das ideias progressistas. Enfim…
“Quando expressamos nossas necessidades indiretamente, através do uso de avaliações, interpretações e imagens, é provável que os outros escutem nisso uma crítica. E, quando as pessoas ouvem qualquer crítica, elas tendem a investir sua energia na autodefesa ou no contra-ataque. Se desejamos obter uma reação compassiva dos outros, expressar nossas necessidades interpretando ou diagnosticando o comportamento deles é jogar contra nós mesmos. Em vez disso, quanto mais diretamente conseguirmos conectar nossos sentimentos a nossa próprias necessidade, mais fácil será para os outros reagirem a estas com compaixão.
“Infelizmente, a maioria de nós nunca foi ensinada a pensar em termos de necessidades. Estamos acostumados a pensar no que há errado com as outras pessoas sempre que nossa necessidades não são satisfeitas.” (p. 84)
– Pra mim é tão, mas tão, mas tão óbvio que declarações como “bolsominion” ou “bandido de estimação” são duas formas fracassadas de convencer o adversário que me surpreende que as pessoas, no dois espectros políticos, ainda acreditem que quando mais forte o xingamento maior será a chance da pessoa perceber os erros que cometeu.
“Quando uma pessoa ouve de nós uma exigência, ela vê duas opções: submeter-se ou rebelar-se.” (p. 119)
“Quanto mais tivermos culpado, punido ou acusado os outros quando não atenderam a nossas solicitações no passado, maior será a probabilidade de que nossos pedidos sejam agora entendidos como exigências. Também pagamos pelo uso dessas táticas pelos outros. Quanto mais as pessoas que fazem parte de nossa vida tiverem sido acusadas, punidas ou forçadas a sentirem-se culpadas por não fazerem o que os outros pediram, mais provavelmente elas levarão essa bagagem a todos relacionamento posterior e ouvirão em cada solicitação uma exigência.” (p. 119)
– Quem sabe a democracia não esteja falhando porque submetemos as pessoas a muitas exigências…
MUDANÇA REAL
“Acredito que ser do interesse de todos que as pessoas mudem não para evitarem punições, mas por perceberem que a mudança as beneficiará.” (p. 47)
– Certa vez, ouvi o Pondé dizer que é próprio do comerciante não ter preconceitos, uma vez que – sendo preconceituoso – ele reduziria sua clientela. Então, o capitalismo – este comerciante contumaz – seria muito mais eficaz em dissolver preconceitos na sociedade, à medida que minorias vão acedendo ao mercado consumidor, que qualquer ideia revolucionária. Tendo a concordar. Parece feio mudar porque algo nos beneficiará; por outro lado, esperar que as pessoas mudem porque são passam por epifanias morais ou éticas é querer demais da humanidade.
“Em minha experiência, repetidas vezes pude ver que a partir do momento em que as pessoas começam a conversar sobre o que precisam, em vez de falarem do que está errado com as outras, a possibilidade de encontrar maneiras de atender às necessidades de todos aumenta enormemente.” (p. 86)
– Um terapeuta DEVE ser capaz de imaginar necessidades não atendidas nas pessoas. Um terapeuta DEVE ser capaz de supor necessidades não atendidas mesmo que elas não sejam verbalizadas. Então, um terapeuta DEVE ser capaz de deduzir que por trás de um reacionário existe alguém com muito medo de mudanças porque mudanças significaram sofrimento em sua vida, e que por trás de um progressista existe alguém com muito medo das coisas não mudaram, porque a rigidez significou sofrimento em sua vida. O primeiro exercício para desenvolver esta habilidade é aplicá-la às pessoas à sua volta, inclusive àquelas com as quais você não concorda politicamente. Você não pode treinar esta habilidade apenas no consultório, porque no consultório você está numa relação de poder (você é, pra todos os efeitos, o sujeito suposto saber). Esta habilidade só será realmente treinada fora do consultório, nos difíceis relacionamentos pessoais em que nunca somos o sujeito suposto saber. Aliás, com este treino, você entenderá que não existe esta de sujeito suporto saber.
“Escolher pedir em vez de exigir não significa que devamos desistir sempre que alguém disser não à nossa solicitação. Significa que não tentaremos convencer a pessoa antes de oferecermos nossa empatia para com o que a está impedindo de dizer sim.” (p. 121)
– Esta frase precisa ser lida devagar e aguardar qualquer conclusão precipitada, pois a livre vontade é algo importante dentro da CNV.
“Ao rotularmos as pessoas, tendemos a agir com relação a elas de uma forma que contribui para criar o próprio comportamento que nos incomoda, que então percebemos como uma confirmação de nosso próprio diagnóstico.” (p. 123)
– A famosa profecia autorrealizada.
“Quando escutamos os sentimentos e necessidades da outra pessoa, reconhecemos nossa humanidade em comum.” (p. 211)
– As pessoas gostam de pedir justiça, mas a primeira delas é equiparar-se a quem não é capaz de promovê-la.
ADULTOS AUTÔNOMOS
“ […] quanto mais as pessoas forem instruídas a pensar em termos de julgamentos moralizadores que implicam que algo é errado ou mau, mais elas serão treinadas a consultar instâncias exteriores – as autoridades – para saber a definição do que constitui o certo, o errado, o bom e o mau. Quando estamos em contato com nossos sentimentos e necessidades, nós, humanos, deixamos de ser bons escravos e lacaios.” (p. 47-48)
– Acabei de resenhar O Eu Integrado, de Nair Ribas D´Ávila. Ela comenta da importância de conseguirmos nomear o que sentimos, a fim de que possamos entrar na coerência entre o sentir, pensar e agir, base da saúde psíquica. Um julgamento proferido é a síntese de sentimentos não desmembrados, não nomeados. Quando nossos sentimentos são desmembrados, não nos sentimos mais aptos a julgar, porque passamos a desconfiar que a diversidade de sentimentos que existe em nós também pode existir no outro, tornando difícil rotulá-lo.
“Se as crianças escovam os dentes porque sentem vergonha e medo do ridículo, sua saúde bucal pode melhorar, mas seu respeito por mesmas ganhará cáries.” (p. 227)
– Quantas cáries temos ganhado por adotar hábitos apenas por vergonha ou medo do ridículo?
AS PESSOAS SÃO MUITO MELHORES DO QUE AS IDEIAS QUE EXPRESSAM
“ […] aprendi que gosto mais dos seres humanos se não ouço o que eles pensam. […] aprendi a apreciar a vida muito mais apenas escutando o que se passa em seu coração, e nçao caindo nas armadilhas do que está em sua cabeça.” (p. 211)
– Uma das razões para se gostar da humanidade mas se detestar pessoas é não acessar o coração.
“Liste os julgamentos que flutuam com mais frequência em sua cabeça, usando como ponto de partida a frase: ´Não gosto de pessoas que são…´ Reúna todos esses julgamentos negativos de sua cabeça e então pergunte a si mesmo: ´Quando faço essa ideia a respeito de alguém, do que estou precisando e não estou obtendo?´ Dessa maneira, você estará treinando estruturar o pensamento em termos de necessidades não-atendidas, e não de julgamentos de outras pessoas.” (p. 214)
– E, desta forma, acessar o coração.
DUAS RECEITAS DE BOLO
” ´Quando acontece (a), sinto-me (b), porque preciso de (c). Portanto, agora eu gostaria de (d).” (p. 237)
– Esta é a receita do bolo da CNV. Você errará cem vezes antes de acertar a primeira vez.
“Cumprimentos convencionais frequentemente tomam a forma de julgamentos, ainda que positivos, e às vezes são feitos com a intenção de manipular o comportamento dos outros. A CNV nos encoraja a expressar apreciação somente para celebrar. Colocamos: (1) a ação que contribuiu para nosso bem-estar; (2) a necessidade específica que foi atendida; e (3) o sentimento de prazer que foi gerado em consequência disso.” (p. 262-263)
– Até sobre elogios (vazios, falsos) a CNV tem algo a dizer. Erraremos cem vezes antes de acertarmos a primeira vez.
Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2021
ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnica para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. Tradução de Mário Vilela. São Paulo: Ágora, 2006
