Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > autoras > Cancelando o cancelamento – Madeleine Lacsko
A biografia profissional da jornalista Madeleine Lacsko tem credenciais superlativas para o trabalho que desenvolve: comentar a política brasileira. E atualmente ela tem comentado de um ponto de vista muito educativo, que é mostrando ao público a forma pela qual diferentes espectros políticos usam de retórica e narrativas pra cooptar como acólito o cidadão que pensa pouco mas acha que sabe muito. Caso você não tenha assistido ao quadro Narrativas que ela grava para O Antagonista, sugiro que o busque no You Tube.
Infelizmente, nem tudo são flores, ainda mais quando se trata de uma mulher inteligente, independente, bonita e corajosa como ela: em seu perfil profissional no X (Twitter), Madá – como é conhecida – sofre cotidianamente ataques de perfis – quase sempre masculinos – que parecem contrapor seus argumentos quando querem mesmo é assediar mulher. Isto já rendeu ameaças inclusive à sua família e Madá teve que lidar com advogados e polícia pra proteger a si e aos que ama. O que também a tornou especialista em desvendar as estratégias de perseguição neste nosso mundo virtual-presencial e como esta gente (doente) age.
Gente menos doente, porém muito esperta, existe na coisa organizada com o nome de “identitarismo”, neologismo que ela traz pra traduzir o fenômeno norte-americano woke – que é diferente da defesa das pautas identitárias, que são e continuam sendo legítimas. Por que é diferente, este é o tema de Cancelando o cancelamento.
Cada vez mais pessoas vêm criticando o movimento woke. E estas pessoas não são reaças como se poderia imaginar. São pessoas que defendem liberdades, defendem minorias, algumas se identificam mesmo como à esquerda (Susan Neiman, por exemplo) e estão preocupadas com o fato de que este movimento mais destrói que muda a situação das pessoas, pois confunde tribalismo com justiça e liberdade. Luiz Felipe Pondé, filósofo brasileiro, em uma coluna sua no jornal A Folha de São Paulo já disse que “tudo que o woke toca vira nada”, equiparando-o a uma forma de “regressão cognitiva” (Folha, 02/06/2024).
A leitura de Cancelando o Cancelamento lhe mostrará como isto ocorre e lhe apontará o que pode ser feito para combater o discurso de ódio do bem. Abaixo selecionei algumas das melhores partes (citações do livro estão entre aspas e em itálico).
Mea culpa é pros fracos
“Todos os que não defendem o que se convencionar chamar de direitos das minorias serão opressores, mesmo se forem representantes das minorias.
“Isso tem uma vantagem enorme para essa elite, a que reza a cartilha do identitarismo. Se ela verbalizar defesas veementes das minorias, passa de opressora a aliada. Dessa forma, não é mais alvo e nem precisa mudar a rotina ou abrir mão de privilégios.”
“A questão central deixa de ser a luta de classes, que tem foco e estrutura social, para ser a questão identitária. No mundo real, existem as duas. No identitarismo, as questões objetivas nem existem.” (p. 26)
– A facilidade de adotar uma atitude woke é que ela não requer ser verificada na vida real – apenas na virtual. Você posa de woke, mas desliga o celular e continua com seu white people problem de sempre. Como diz a autora um pouco mais à frente, o identitarismo é perfeito pra aliviar sentimentos de culpa, ser reconhecido como virtuoso sem na real mudar um pingo a vida das pessoas. É o velho problema da culpa burguesa. (BTW, Barbie, pra mim, é o epítome da culpa burguesa: um filme que pede desculpas pelas mulheres agora estarem ganhando no jogo do capitalismo – pelo menos as de Holywood.)
“A seita do identitarismo tende a formar grupos altamente tóxicos, já que todos precisam se convencer de que são intrinsecamente bons e somente bons, então param de ter a disciplina para controlar o que há de mau dentro de si.” (p. 47)
– As grandes religiões, ao postularem que o mal está sempre à espreita (como na ideia do pecado capital, por exemplo), são eficazes em depurar o caráter humano. Mas quando o mal não pode mais lhe atingir porque você está esperto, é como Madá falou: a autovigilância some. O livro elenca quais seriam os comportamentos tóxicos que surgem deste rebaixamento da autoviligilância citando o estudo de um psicólogo chamado Jonathan Shedler: splitting, negação, controle onipotente, desvalorização, masoquismo moral, projeção, transferência, false self, onipotência, externalização, formação reativa, inveja extrema, repetição e encenação, splitting externo, deslocamento e identificação projetiva. No livro vem tudo explicado.
“A polarização emocional é aquela em que você não adere a um grupo, como um partido, por pensar que seja o melhor. Você tem horror absoluto a um grupo, partido ou figura política e, portanto, decide aderir de forma acrítica à força que considera mais capacitada para derrotar o que repudia.” (p. 52)
– Aqui não escapa ninguém. Mesmo que a gente não tenha este comportamento na política, mesmo que não tenha este comportamento no 1º turno, no 2º é irresistível ter.
” ‘Dentre todas as tiranias, uma tirania exercida pelo bem de suas vítimas pode ser a mais opressiva. (…) , disse C. S. Lewis (1898-1963). E ele nem tinha internet.” (p. 173)
– Recentemente, resenhei aqui o livro Por que a psicanálise? de Elisabeth Roudinesco. Em determinado momento ela mostra como a exacerbação de diagnósticos em psiquiatria pode aniquilar a busca de soluções sociais para problemas que são sociais, dando a impressão de que eles poderiam ser resolvidos no âmbito da saúde mental do indivíduo. Embora seu livro seja de 1999 – muito anterior, portanto, ao wokeísmo – já intuía a migração da luta do político para a esfera privada.
A surrada democracia
“O conceito de democracia só é possível a partir do consenso sobre a dignidade humana.” (p. 53)
– E com que facilidade isto é esquecido…
“Tendemos a ver a desinformação como disputa pela verdade, o que é um erro. Ela tem mais relação com a criação de dúvida sobre o que já é ponto pacífico.” (p. 56)
– A diferença é sutil, mas bem importante. Pegue um fato consumado – como a segurança e eficácia das vacinas, por exemplo – e comece um processo de desacreditá-las. E nem estou falando das vacinas recentes, porque o movimento moderno antivax tem pelo menos uns 30 anos. Ninguém está questionando hoje, como se fazia no início de 1800, se inocular um agente patógeno criaria imunidade – naquela época isto poderia ser questionado. Estão é questionando isto agora, depois de centenas de trilhões de doses de vacinas aplicadas em todo o mundo.
“Há um inimigo em comum para todos os grupos extremistas, o moderado. Ele representa ameaça à existência do próprio grupo, já que é um questionamento eterno à sua racionalidade, eficácia e moralidade.” (p. 74)
– Como você elimina a ameaça dos moderados? Taxando-os de isentões.
“Resolveu se dar o nome de multiculturalismo à aceitação tácita de violações de direitos humanos, apagamento de mulheres, naturalização de ditaduras violentas e até, no caso concreto, uma ordem para assassinato de quem escreveu um livro.” (p. 215)
– Escrevo esta resenha dias depois do atentado ao candidato Trump num comício nos EUA. Leio uma coluna no jornal onde o autor lembra quais foram os artistas americanos e como desejaram que Trump morresse. Outra coluna em que se reflete como a comparação dele com Hitler poderia ter tornado imperativo exterminá-lo. Se você pudesse matar Hitler enquanto ainda era uma criança, você o faria? (A Folha de São Paulo, João Pereira Coutinho, 15/07/24). É a nossa sociedade Total Recall do filme antigo com Tom Cruise, em que assassinos existem antes mesmo de cometerem assassinatos.
Enquanto houver otário, malandro não morre de fome (um ditado que Madeleine repete bastante)
“Perceber quando estamos sendo usados e quando uma postagem parece sob medida para prender nossa atenção é um primeiro passo nessa caminhada de autoconhecimento e uso positivo das redes sociais.” (p. 95)
– Um passo seguinte, se você usa as redes como canal de promoção dos seus produtos/serviços, é ter a decência de não usar seus seguidores como não gostaria de ser usado. Aqui é que a porca torce o rabo. Na minha área, lidamos muito com pessoas ansiosas. Mas quantos são os terapeutas que param de criar postagens que manipulam a ansiedade das pessoas pra que elas finalmente lhes liguem marcando uma consulta? Quantos estão dispostos a parar de usar fórmulas como as do Érico Rocha, por exemplo, que são ansiogênicas, pra vender seus serviços? Quem?
Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2024
LACSKO, Madeleine. Cancelando o cancelamento: como o identitarismo da militância tabajara ameaça a democracia. São Paulo: LCM Editora, 2023. 224 p.