Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > autoras > Café pequeno – Zulmira Ribeiro Tavares
Café Pequeno (1995) é um romance curioso. Escrito por Zulmira Ribeiro Tavares (1930), que já ganhou o Prêmio Jabuti em 1990 por Joias de Família, ele tem uma dicção tresloucada, que mistura sonoridade antiga a ritmo contemporâneo. É muito interessante conhecer da vida da autora para apreciarmos melhor esse romance. Nascida em São Paulo, de família quatrocentona, educou-se em casa e só foi estudar fora quando já tinha 22 anos. Então, formou-se em cinema pelo MASP, o que lhe permitiu atuar como crítica de filmes antes de se dedicar em definitivo à literatura.
Essa primeira etapa da vida, passada na São Paulo da Era Vargas, deve ter marcado profundamente suas memórias, como, de resto, sempre nos marcam aquilo que vivenciamos quando ainda somos jovens o suficiente para temer o futuro sem o temer de fato. Com pai engenheiro, Zulmira trouxe toda essa memória para dentro de Café Pequeno quando, partindo de uma notícia de jornal que falava da comemoração do 14 de Julho em 1935 na casa do cônsul francês na capital paulista, ela narra a história do aniversário de um industriário paulistano, engenheiro civil, descendente de nobres franceses, que não consegue gozar integralmente da festa por conta de vários pequenos acontecimentos que atrapalham o dia: a própria reunião na casa do cônsul, que ele inveja, as crianças em volta de casa, que fazem bagunça e o distraem, o sócio, que insiste em lhe falar de novos negócios, a leitura de um livro que fala do parto de Maria Antonieta, rainha da França, que o perturba e, finalmente – o pano de fundo para todo o romance – , o estouro de uma boiada de 350 zebus no centro de São Paulo, causando contratempos e pânico à população.
Esse incidente, os bois escapulindo ao controle e indo parar às portas das mansões dos novos ricos paulistanos, dá ensejo para várias interpretações e constitui o maior achado do romance, tão perplexos ficamos – e ficaram também os personagens – em constatar como simples animais podem perturbar o ritmo do progresso. Diante de zebus enfurecidos porque condenados à morte, a locomotiva paulista precisou frear. Foi o recado da nação: São Paulo, ou bem estamos juntos ou somos inimigos.
Acredito que o livro tem um sabor especial para paulistanos expatriados, como eu, que, sem querer voltar a morar na cidade, têm nostalgia da capital onde tudo funciona. Zulmira vem mostrar que, sim, funciona, mas se pagando o preço.
Abaixo transcrevo um trecho que me deixou particularmente impactada, que é a descrição do destino dos zebus importados pelo Brasil: o matadouro. Acho que ele dará testemunho da dicção de Zulmira, além de ser um libelo vegan, mostrando como o homem sempre explorou os animais. Isso sem contar a associação quase instantânea que me surgiu entre a migração de bois e a migração nordestina, ambas servindo ao propósito de erguer e alimentar São Paulo. Veja:
“Os zebus, que em 1935 partiam regularmente de Mato Grosso para serem abatidos em São Paulo, eram os descendentes daqueles que na segunda metade do século XIX realizavam o percurso contrário e, do litoral, alcançavam o planalto dirigindo-se a Mato Grosso e outras regiões. Seguiram-se a eles os mascates de gado que em longas caminhadas iam oferecendo aqui e ali exemplares do gado indiano para reprodução. Mas ainda, antes ainda, vieram os outros, os primeiros bois chegaram com os primeiros tempos; os bois europeus que abriram o caminho das boiadas vindas nos anos seguintes. (…)” (p. 49)
“Por essas paragens então teriam passado pela ferrovia aberta na mata muitos zebus descendentes dos que haviam chegado antes dela própria – trazidos de um país onde sobre eles não havia motivo para se assinalar nos relatórios dos serviços de trem, ‘de pé’, já que, santos que eram, amigos dos deuses, seguiam mesmo sempre de pé; nunca abatidos. Mas nem por terem garantia de vida pastavam sossegados entre as populações do campo indiano: serviam de boi carreiro, boi de arado, de vaca leiteira, e eram afinal de contas vendidos para outras terras que muito certamente os iriam transformar – e aos filhos e filhos de seus filhos – em bois de açougue. Na verdade, apenas os touros indianos marcados com certos sinais sagrados eram realmente deixados sem encargos que não os da perpetuação da espécie.
Trazidos para o Brasil, nenhum dos zebus gozou de qualquer consideração especial na nova terra. De sagrados que haviam sido para uma parte da sociedade humana, não conseguiram de início no país nenhum lugar de destaque na própria sociedade bovina, frequentemente desacatados pelos zootécnicos.” (p. 51)
Não sei quanto a você, mas, para mim, a enumeração que inicia com “boi carreiro, boi de arado, de vaca leiteira”, interrompida com a descendência dos bois descrita como se fossem humanos, para terminar com “bois de açougue” é muito impactante. Releia e me diga se não é mesmo.
revisto por Mayra Corrêa e Castro ® 2012