Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > autoras > Cadê Você, Berdanette? – Maria Semple
Este é um livro absurdamente bom! Depois de ler, você vai concordar comigo que:
1) Escritores norte-americanos têm um talento irritante para entreter; e
2) Nada de interessante tem acontecido na literatura deste século XXI que não esteja sendo protagonizado por autoras. (Jo Rowling, Jennifer Egan, Meg Cabot, Stephenie Meyer, Erica L. James, só pra ficar nas que vendem muito, sem equiparar talentos e gêneros).
Maria Semple (1964) tem pedigree: o pai, Lorenzo Semple Jr., foi roteirista do filme Batman (1966), King Kong (1976), Flash Gordon (1980) e do James Bond Nunca Mais Outra Vez (1983), entre várias outras colaborações no cinema e na TV. Sua filha deu no que deu: virou integrante das equipes que escreveram Barrados no Baile (1992), Ellen (1994-95) e Mad About You (1997), além de ter atuado como produtora de TV. Então a moça resolveu escrever romances. Publicou o primeiro, This One Is Mine em 2008 e o segundo, este Cadê Você, Bernadette?, em 2012. O fato do livro ser sensacional não deve assustar; o background dela é gigante.
A história do livro é a coisa mais maluca do mundo: uma mãe, arquiteta-gênio, amigona da filha de 15 anos que, quando nasceu, foi operada várias vezes do coração, resolve sumir do mapa, aparentemente porque não queria viajar com a menina e o pai para a Antártida. O pai é um alto executivo da Microsoft, envolvido num projeto de neurociência com robótica, que começa desconfiar que a esposa está maluca. A esposa talvez esteja mesmo, porque foi considerada, jovem, a arquiteta mais promissora dos Estados Unidos e, de repente, se isolou do mundo, teve vários abortos, antes de se tornar mãe de uma menininha doente, Bee. Bee é quem narra a história, juntando documentos que tentam explicar por que sua mãe sumiu. Entre os documentos surge de tudo um pouco: emails, faxes, bilhetes escritos à mão, xerox de reportagens, relatório de viagem, relatório de consumo de cartão de crédito, postagens de blogs e até documentos do FBI. Sim, o livro consegue, numa tacada de 372 páginas que você lê como se estivesse xeretando a timeline de amigos do Facebook, cobrir diversos assuntos: arquitetura, mundo corporativo, colégio interno, Seattle, indústria de informática, cultura web, redes de apoio tipo Alcoolicos Anônimos, Antártida, FBI, máfia russa, crimes cibernéticos.
O perigo do livro é se identificar com Bernadette, uma mãe nada convencional, que obriga a família a comer comida pronta todos os dias, a morar num prédio que serviu de internato, que passa o dia num trailer porque detesta topar com a faxineira, e que – o melhor do livro, a parte mais divertida de 10 a 0 – contrata uma assistente pessoal na Índia pra fazer tudo pra ela, desde comprar a comida do jantar até buscar um médico pra extrair seus sisos em Seattle. Quando você pensou que leria um livro em que a protagonista é uma norte-americana que tem uma assistente pessoal na Índia, hein?! Daí, como a gente sempre fala mais do que deve quando se comunica por email, tudo que Bernadette odeia nas pessoas, sobretudo nos caipiras que moram em sua cidade, é dito/escrito a sua assistente pessoal – sem papas na língua.
Bem, pra resumir o romance: pegue o talento de Jennifer Egan em A Visita Cruel do Tempo para trabalhar com histórias que começam paralelas e de repente se cruzam; pegue a criatividade de Jo Rowling para criar situações surreais; pegue o talento de Meg Cabot e Stephenie Meyer para criar enredos adolescentes; e pegue o adjetivo adulto da literatura que Erica L. James faz (pegue apenas isso, please!). Misture tudo e acrescente as risadas que você dava com a Ellen De Generes e o casal de Mad About You, e você tem Cadê Você, Bernadette?. Parece livro pra menininhas, mas o humor é muito ácido pra isso; parece livro de escritor cabeça, mas o argumento é muito singelo pra isso; parece livro policial, mas a narradora tem 15 anos, ora bolas!, e está falando da mãe dela; parece uma comédia de costumes e isso de fato é. Das melhores.
Vai correndo comprar o livro. Não tenho tanta certeza se homens sérios irão curti-lo. Mas quem se enfiava nos seriadinhos que a Sony passava nos gloriosos anos 90 vai se amarrar!
Abaixo pincei uns trechos engraçados. (Claro, fica mais engraçado no contexto; ainda sim tentarei transmitir a engraçadice da coisa.)
Vendo por esse ponto de vista…
“ ‘Sabe o que um daqueles caras que trabalham no drive-thru do Starbucks tem tatuado no antebraço?’, perguntou Bernadette.‘ Um clipe de papel! Antigamente, era tão ousado fazer uma tatuagem, mas hoje em dia as pessoas estão tatuando suprimentos de escritório no corpo.” (p. 109)
– Isso é muito engraçado! Me faz lembrar o comediante Paulo Gustavo na personagem Senhora dos Absurdos. Que comentário escroto – e inteligente – pra se fazer sobre uma tatuagem estúpida! kkkk
“Resolvi me vestir e sair à caça de alguém, qualquer um que pudesse me ajudar. A porta do elevador se abriu. Você não acreditaria no bando de degenerados que saiu de lá de dentro. […] Tinha uma meia-dúzia deles, cheios de piercings indescritíveis, com os cabelos raspados em tufos medonhos e pintados de cores fluorescentes e cobertos de tatuagens desbotadas da cabeça aos pés. Um camarada tinha tatuado uma linha em volta do pescoço com as palavras CORTE AQUI. Uma moçoila estava vestindo uma jaqueta de couro que trazia nas costas, preso com alfinetes, um ursinho de pelúcia segurando a cordinha de um absorvente interno manchada de sangue. É o tipo de coisa que eu não poderia estar inventando.” (p. 162)
– Tirando a piada com mais uma tatuagem (rs!), é um troço cômico a narradora dizer que não poderia ter inventado, pois a autora inventou!
Pros curitibanos que me leem
“Ninguém em Seattle gosta de mim. No dia em que eu cheguei aqui, fui até a Macy´s para comprar um colchão. Perguntei se alguém poderia me ajudar. ‘Você não é daqui, é?’, disse a moça. ‘Dá pra sentir pela sua energia’. De que energia ela estava falando? De pedir ajuda a uma vendedora na seção de colchões?” (p. 150)
– Me proibiram de falar do mau humor do curitibano, então fiquei sem o que escrever pra esta citação… Mas você captou, não captou?
“Vamos fazer uma brincadeira. Eu digo uma palavra e você diz a primeira coisa que vem à sua cabeça. Pronto?
EU: Seattle,
VOCÊ: Chuva.
O que você ouviu sobre a chuva: é tudo verdade. Você imagina que ela já deveria ter sido totalmente incorporada à rotina, especialmente entre os nativos. Mas toda vez que chove e você precisa interagir com alguém, isso é o que eles dizem: ‘Dá pra acreditar nesse tempinho?’ E você quer dizer: ‘Sim, dá pra acreditar nesse tempinho. Só não dá pra acreditar que eu estou realmente tendo uma conversa sobre esse tempinho’.” (p. 151)
– Outro trecho memorável de livro pra curitibano ler é em Eclipse, quando Bella reclama do clima de Forks. Aliás, ela reclama o tempo todo do clima de Forks.
Não falei que tinha tons de cinza na parada?
“Tudo o que você precisa saber sobre a Antártida é que ela é composta de três faixas horizontais. Na parte de baixo tem a faixa d´água, entre o preto e o cinza-escuro. Em cima disso tem a faixa da terra, que é geralmente preta ou branca. E aí tem a faixa do céu, em algum tom de cinza ou azul. A Antártida não tem bandeira, mas se tivesse seriam três faixas horizontais em diferentes tons de cinza.” (p. 316)
– Olhe, se Maria Semple não escreveu isso de propósito, eu não mais mais o quê. Todo mundo sabe que o charme de ir pro Polo Sul/Polo Norte é mencionar que os esquimós têm dezenas de palavras pra descrever a neve. Mas a autora resolveu descrever os cinzas. Muito bom! Põe isso na boca de um ator, mete as legendas embaixo e, pronto, já vejo você rindo.
Papo-cabeça
“Não demorou muito para que eu parasse de pensar na minha casa e nos meus amigos, porque quando você está num barco na Antártida e não há diferença entre dia e noite, quem é você?” (p. 318-319)
– Relevemos, a narradora tem 15 anos de idade. Mas ela tem razão: ficar sem dormir desorienta o ser.
“Havia alguma coisa indescritivelmente nobre na sua idade, seu tamanho, sua ausência de consciência, seu direito de existir. Cada iceberg que eu via me enchia de sentimentos de tristeza e fascínio.” (p. 356)
– Não sei se papo-cabeça é um gíria que as pessoas ainda usam. Anyway, o livro tem umas tiradas assim, líricas, como essa em que a Bee fala do impacto de ver um iceberg. Eu também choraria.
Multibilionário x multibilionário
“No Choate [nome de um colégio interno para onde a narradora Bee vai estudar], você precisa falar sobre o seu pai. O pai dela era dono de uns prédios em Nova York. Sem brincadeira: todos os alunos tinham um iPhone, e a maioria tinha também um iPad, e todos os computadores que eu vi eram da Mac. Quando eu disse que meu pai trabalhava na Microsoft, eles tiraram sarro de mim na minha cara.” (p. 293)
– A única razão para você comprar dispositivos e mais dispositivos Apple é porque nunca mais vai conseguir enviar uma foto via Bluetooth de seu iPhone pro seu PC como você fazia do seu Motorola.
revisto por Mayra Corrêa e Castro ® 2013