Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > crítica literária > Aos 7 e aos 40 – João Anzanello Carrascoza
O ano passado marcou a estreia de João Anzanello Carrascoza (1962) no romance. A sorte nossa é que seu romance ganhou uma edição caprichadíssima da Cosac Naify, em que o design do livro conversa com a história. E que história! Numa narrativa em que o homem de 40 anos dialoga com o menino que foi aos 7, João vai trazendo ao leitor a inevitável comoção da passagem do tempo, construindo um painel fotográfico semelhante àqueles em que a imagem de uma pessoa jovem é colocada lado a lado à sua mesma imagem depois de envelhecida. Existe um choque porque vemos apenas o antes e o abrupto depois.
E para nos levar ao depois, a construção do livro se vale de um recurso caro à prosa de João: o pressentimento. São pequenos sinais na paisagem, na fisionomia das pessoas, algumas palavras que elas falam que apontam, àqueles que têm sensibilidade para detectar essas pistas, que nada mais será como antes. É através desse recurso que percorremos as páginas coloridas de verdes do volume, até que se revela o que estava para acontecer, seja algo triste, seja algo lindo.
Esperar pelo desfecho, no entanto, não demanda pressa: aliás, o autor é exímio em modular com adjuntos suas orações.E adjuntos são aquela coisa que que faz com que a gente leia e volte atrás, pra ressignificar o que foi escrito. É tão bonito que uma mesma frase gosta de ser lida uma, duas, três vezes – a gente não se cansa. Não cansa também o artesanato feito em torno das palavras, juntadas de forma inesperada, mas tão finamente quanto renda guipure.
Vou tentar pinçar alguns trechos exemplares dessa boniteza.
Tecelagem
“Assim era um dia, o outro também: eu despertava, me enfiava no uniforme e no menino que me cabia, o café da manhã vinha a mim, eu e meu irmão indo pra escola, o caminho um sobe e desce que andava em nós; […]” (p. 9)
– Está aqui o que digo sobre a renda guipure: “no menino que me cabia” e “O caminho… que andava em nós”. E este acabamento vai percorrendo cada uma das páginas, adensando no ouvido; a história percorre por trás, como a pele que se entrevê pelo bordado, mas quem nos entorpece é a renda.
“Eu nem sabia ler a tristeza nas pessoas. Eu ainda errava no meu olhar. Mas aí eu me acerquei, no máximo de meu quieto, como se dizendo, Oi, eu tô aqui.” (p. 11)
– “No máximo do meu quieto”, num garoto de 7 anos, é um pequeno felino – um gatinho fofo – se avizinhando da primeira namorada. Amei.
“De vez em quando a gente o via, abastecendo de água um recipiente, despejando alpiste, saindo e entrando da cozinha, manso, ele só ele.” (p. 26)
– “Ele só ele” não é apenas ele; é ele em toda a sua humanidade. Lindo.
“Ninguém tinha nascido em mim daquele jeito, e me habitado sem fazer força, e, assim, ela coincidia, do lado de fora, com aquela que ia dentro do meu pensamento.” (p. 73)
– É muito delicado falar assim do primeiro amor.
“Era um muito pra se ver, e eu não dava conta de me prender todo naquele acontecimento que se abria […]” (p. 75-76)
– O menino de 7 anos está eufórico, e é tanta euforia que o sistema nervoso tem que conter os estímulos pra não implodir. Bacana.
Pressentimentos
“Porque o menino logo atingiria o ponto do caminho onde o homem que ele seria o esperava.” (p. 17)
“- e, de repente, a realidade ondulara, substituindo aquela vivacidade pelo abatimento.” (p. 40)
“Apesar de estar ali, mexendo com a colher nas panelas, provando o caldo na palma da mão, atenta ao sal e aos temperos, a tia andava longe, eu podia sentir, a tia estava noutro degrau do mundo.” (p. 127)
“- aquele passeio pela cidade era uma hora final.” (p. 145)
– Quando se lê os textos de João, temos que estar pré-dispostos a ir e vir pela vida.
Outros livros do autor resenhados aqui:
Aquela Água Toda (2012) – leia a resenha
Amores Mínimos (2011) – leia a resenha
Dias Raros (2004) – leia a resenha