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Anônimos – Silviano Santiago

Postado às 20:29 do dia 01/10/12

Sabe aquelas descrições de comidas com sabor de infância que nenhum escritor com menos de 45 anos tem coragem de colocar num livro? Silviano tem. E aquela coisa de retomar a narrativa com a repetição de parágrafos que ficaram lá atrás de uma digressão qualquer, como se o texto fosse gago? Novatos não se autorizam a esse recurso, mas Silviano, sim.

Mineiro, nascido em 1936, autor de livros premiados com o Jabuti (1982, 1993 e 1997) e condecorado com o Prêmio para Conjunto de Obra pelo governo do Estado de Minas Gerais em 2010, Silviano Santiago escreve em Anônimos com a liberdade de quem não precisa mais fazer pose para provar o próprio talento, porém com talento para olhar a vida sem o deboche da maturidade.

O livro contém dez contos, sendo que o último presta homenagem a Guimarães Rosa. Intitulados secamente (Calendário, Frescobol, Multa, Modesto, O anjo, Dezesseis anos, Chester, Separação, Cervical e Ceição Ceicim), contam um pedaço da vida de personagens que subiram um pouco na escala social e, por isso, podem refletir sobre as escolhas que têm pela frente, não fosse os contos sempre acabarem “na hora em quê”. Fiquei muito intrigada com esse jeito de narrar do Silviano e busquei relação com o título do livro.

Refleti se seus personagens seriam de fato anônimos, porque não me pareceram ser de jeito nenhum. Se você pegar Eles Eram Muitos Cavalos, de Luiz Ruffato, e o comparar ao Anônimos, lá, sim, existe um quadro de anonimato, porque a cidade engole o destino de personagens comezinhos. Os personagens de Santiago são igualmente simples, mas não existe uma condição social que os cale. Pelo contrário, todos têm seu passado e suas reflexões; sobretudo, todos têm voz – os contos são, em maioria, narrados em primeira pessoa. Então, onde estaria o anonimato?

Finalmente compreendi a charada com a leitura de Dezesseis Anos. Trata-se da história de um menino que, recordando como a mãe controlava o ambiente doméstico, resolve mudar a regra. Só que essa mudança, que valeria a pena ser contada porque colocaria o menino como sujeito de seu destino, é justamente onde o conto termina. Não sabemos nada do que viria depois. E nisso reside o anonimato no livro: num futuro que, interessante ou não, pouco importa.

Abaixo vou transcrever algumas passagens que darão a medida do estilo de Silviano. Mas o que eu disse da forma como ele (não) finaliza os contos – para fruir isso você terá de ler todo o livro.

 

 

Contagem do tempo

“O percurso rotineiro dos dias da semana, que se unem em mês e, depois, em ano, não mais se assemelhava à pista asfaltada para a corrida dos cem, duzentos ou mil e quinhentos metros, à espera do corredor em dia de treino ou de competição. A cada nova manhã, a caminhada cotidiana despontava como igualzinha a uma maratona com inesperadas e intransponíveis barreiras dispostas pelo trajeto a ser percorrido. Os sucessivos obstáculos não extinguiam minha sede de vida; serviam, antes, para demonstrar como tropeço bem e melhor me estatelo no chão.” (Calendário, p. 11)

– É muito interessante acompanhar as metáforas que os personagens dos contos usam para refletir sobre si. O universo de cada um é limitado por suas profissões ou por suas obsessões. Assim, em Calendário, o narrador, que é um admirador confesso de um corredor tcheco medalhista de ouro nas Olimpíadas de 1952, só consegue pensar seu cotidiano através de percursos a serem vencidos. No conto Separação, um garçom aposentado avalia as pessoas ao seu redor como se elas estivessem numa mesa de restaurante. Em Multa o narrador, que é bancário, cria um relacionamento pautado em trocas monetárias. E há outros exemplos.

“Nhô Ignácio lhe diz que, na aritmética do Beiçudo, se de mil se tiram novecentos e noventa e nove fica mil invertido.” (Ceição Ceicim, p. 186)

– Ai que eu nunca tinha pensado em como é que o diabo faz conta!

“Entre uma ideia e a outra, Nega Alva empurrava o menino para o quintal, onde ele podia maquinar o bem e o mal sem herdar os estragos do feito.” (Ceição Ceicim, p. 189)

– Quando seus filhos teimarem em correr pela casa com espada de madeira em punho, corra gritar-lhes: “É lá fora que não se herdam os estragos do bem e do mal!”

 

 

Memória

“Há pessoas que nascem com memória domesticada. Seus corredores são perfeitamente manuseáveis e repetitivos, semelhantes aos de mina abandonada de ouro ou de carvão mineral.” (Calendário, p. 16)

– É uma boa descrição, não é? faz você pensar em circuitos neuronais viciados.

 

 

Sexo, amor e amizade

“A amizade não tem sexo, por isso não é leviana. Sexo empobrece o dia a dia das relações humanas, curto-circuitando-as com a ameaça ou a realidade feroz da vida monogâmica.” (Calendário, p. 17)

– O narrador era homem.

“Em retrospecto, descubro que a palavra também é a verdadeira razão para eu ter ido morar no apartamento da Rosa. Durante o longo namoro foi a  palavra mais empregada pelos dois.” (Modesto, p. 86)

– Sim, ainda um homem narrando.

“Nosso primeiro beijo não foi motivado pelo amor, ou seja, pela força estranha e covarde que aniquila a vida da gente.” (Modesto, p. 88)

– Homem. Alguma dúvida aqui?

“Eu mantinha minhas namoradinhas na corda bamba do amor que se faz a dois e de graça.” (Cervical, p. 157)

– Mudamos: agora é um cafajeste.

“Nhô Ignácio era, pois, fazendeiro donzelo.” (p. 180)

– Aqui eu não sei o que é.

 

 

Nascer

“Ninguém nasce carteiro. (…) Nasce carta silenciosa, escrita na bolsa amniótica pelo silêncio asfixiante dos nove meses. Carta silenciosa e de dispositivo interno sonoro, semelhante a moderno cartão de Natal. A mensagem se faz gente e, assim que o envelope for aberto diante dos olhos estatelados, sofridos e amorosos da mãe, abre o bué.” (Frescobol, p. 21)

– Não é cruel e hilário chamar um recém-nascido de cartão de Natal com dispositivo sonoro?!

“Nasceu da mãe que o desacolheu tão logo nascido. Não foi amamentado nem adoutrinado por ela. Nega Alva foi sua ama de leite, mãe na fome e no asseio, pai nas ilustrações, irmã mais velha na família, e companheira de folguedos, já que não havia ao redor da fazenda de Nhô Ignácio miúdos e miúdas do tamanhinho dele. Nega Alva foi seu tudo alimentício e explicativo da vida.” (Ceição Ceicim, p. 178-179)

– Ter uma Nega Alva na vida é sorte.

 

 

Comidas

“Dengosa, derretia-se como banha na panela, à espera do alho com sal, amassado no pilãozinho de madeira em companhia da cebola picada e da pimenta-do-reino.” (Frescobol, p. 26)

“À mesa do jantar, calou fundo a sobremesa negada ao filho metido a sabichão. A minha preferida. Uma fatia de manjar de coco, com ameixas pretas a nadar em calda tão espessa quanto xarope para a tosse.” (Frescobol, p. 39)

“A primeira dentada abria uma fresta no pastel. Por ela escorria o queijo amanteigado derretido, deixando engordurado o guardanapo de papel.” (Multa, p. 69)

“Há uma técnica especial para fazer a bala durar na boca. Evitar, primeiro, que tenha qualquer contato com os dentes, tanto com os da frente quanto com os de trás. A pastilha deve ficar totalmente protegida pela língua e ser jogada apenas contra o céu da boca, jamais contra os dentes. A bala irá sendo pouco a pouco laminada pela saliva e se transformará numa linguetazinha quebradiça. É preciso muita esperteza para que o exercício adocicado da saliva seja completo. Língua e céu da boca têm de funcionar como uma espécie de envelope.” (Dezesseis Anos, p. 113)

– Eu fiquei com uma nostalgia danada lendo o livro, porque me lembrei de minhas comidas afetivas. Então recordei uma cena no desenho animado Ratatouille, aquela em que o crítico gourmet come berinjela com abobrinha e volta à sua casa da infância. E quais são suas comidas afetivas?

– P.S.: Meus leitores vegans, prestem atenção no conto Separação, que fala sobre confinamento de cães em apartamento. É um crônica com tons abolicionistas.

 

 

Céu de menino

“Para cada estrela nos céus, Deus tinha plantado uma lâmpada acesa nos casebres que foram subindo até o topo das montanhas petropolitanas. Estrelas lá no alto correspondiam em intensidade e número às lâmpadas acesas cá embaixo.” (O Anjo, p. 96)

– Quando o cometa Halley passou pelo céu da Terra, em 1986, não conseguimos enxergá-lo direito porque Deus tinha plantado muitas lâmpadas nas cidades. Só os que dirigiram seus carros até ermões esquecidos por Ele é que conseguiram avistar o rabo de Sua obra.

 

 

revisto por Mayra Corrêa e Castro ® 2012

 

SANTIAGO, Silviano. Anônimos. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.

 

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