Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > autoras > Água viva – Clarice Lispector
Água Viva (1973) é um choque. Há aqueles que preferem A Paixão Segundo G. H. (1964), há aqueles que não gostam de Clarice, mas não existem indiferentes ao desconcerto deste livro.
Você abre a primeira página e já fica bege. Que que esta mulher tá escrevendo?!
A boa notícia é que ela avisa logo de cara:
“Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais.” (p. 9)
A má notícia é que para por aí. Não tem nenhumazinha outra indicação do caminho a ser percorrido. Não tem muito jeito de acomodar Água Viva em nenhuma definição, exceto a mais óbvia, que se trata de uma carta (carta?) escrita por uma pintora que, no meio da noite, descobre-se deslumbrada com a Verdade, mas não consegue descrevê-la. (Você também pode dizer que a narradora teve um surto psicótico; já falaram isso sobre o livro, só que não significa que Clarice sentou e “fez o download” dele duma vez só. Pelo contrário, Água Viva foi reescrito umas sete vezes com base em textos que ela ia largando dentro de uma caixa até resolver juntá-los todos.)
Para o bem ou para o mal, fato é que a leitura do romance (romance? relato? ensaio?) rende inúmeras identificações, daquelas em que Clarice parece estar falando diretamente a você. E o mais assombroso dessa fala é que pouco importa o conteúdo, embora seja por frases de conteúdo filosofiquento que a autora passou a ser uma das mais citadas nas redes sociais. O que mais importa na sua fala é o tom de grito, a sensorialidade. Água Viva já foi objeto de muitos estudos. Entretanto, meu conselho é que o leia não com os olhos da cabeça, mas com a pele e o estômago. Se levar a voz do livro para dentro de seu corpo, tenho certeza absoluta de que ficará chocado. Ou em êxtase. Mas minha aposta é mais pelas suas tripas retorcidas.
Abaixo selecionei os trechos que mais me comovem.
Metalinguagem
“A palavra é minha quarta dimensão.” (p. 11)
– Você pode achar Clarice Lispector um pooorre. Mas não dá pra não dizer que a mulher se entregou à escrita.
“Ao escrever não posso fabricar como na pintura, quando fabrico artesanalmente uma cor. Mas estou tentando escrever-te com o corpo todo, enviando uma seta que se finca no ponto tenro e nevrálgico da palavra.” (p. 12)
– Essa coisa de colocar pessoa humana como objeto de um verbo do qual se espera um objeto inanimado funciona até hoje, meo deos! Podia ser a maior novidade da face da terra há 40 anos atrás, mas por que é que a gente lê “escrever-te com o corpo todo” e ainda fica, tipo assim, bobo? Mistérios de Clarice…
“ […] escrevo por profundamente querer falar.” (p. 12-13)
– Que advérbio de arrepiar! Tá vendo como a fala dela é grito? Releia sem o advérbio e veja como a frase passa dizer à cabeça e não mais às entranhas. Faça o teste.
“Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra.” (p. 21)
– Toda santa vez que ouço um escritor explicar por que começou escrever, repasso os versos de O Poeta Aprendiz, de Vinícius: “E achava bonita / A palavra escrita”. Poetas são pegos pela beleza – e é tudo.
“Mas a palavra mais importante da língua tem uma única letra: é. É.” (p. 28)
– Não é realmente uma sorte nossa o “é” ter uma única letra? Tivesse duas seria tonto tonto.
“Escrevo-te em desordem, bem sei. Mas é como vivo. Eu só trabalho com achados e perdidos.” (p. 72)
– Mais literal do processo de escrita do Água Viva impossível.
“Sei que depois de me leres é difícil reproduzir de ouvido a minha música, não é possível cantá-la sem tê-la decorado. E como decorar uma coisa que não tem história?” (p. 81)
– Meu amor, Clarice e Elis são inimitáveis. Achem outras com quem angustiar sua influência.
“Tudo acaba mas o que te escrevo continua.” (p. 95)
– Me lembrei da declaração do João Gilberto Noll: “Escrevo porque vou morrer e eu acho isso uma sacanagem.” – leia mais.
Alimenta-te de poesia
“Capta essa coisa que me escapa e no entanto vivo dela e estou à tona de brilhante escuridão.” (p. 14)
– Me lembra tanto Mário de Sá-Carneiro: Perdi0me dentro de mim/ Porque eu era labirinto,/ E hoje, quando me sinto/ É com saudades de mim.
“Eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca.” (p. 18)
– Você está proibidíssimo de se lembrar da letra de Gita, do Raul.
“O mundo: um emaranhado de fios telegráficos em eriçamento.” (p. 24)
– Tô pra crer que ela podia sentir essa vibração no corpo, ao andar na rua.
“É-se. Sou-me. Tu te és.” (p. 29)
– Ai como é bom ter aprendido conjugar verbo na escola pra poder gostar desses sons todos. Meus filhos, criado num português variante, será que sentiriam essa sonoridade também?
“O ar é o não lugar onde tudo vai existir.” (p. 37)
“O erotismo próprio do que é vivo.” (p. 40)
– Certa vez ouvi que estar vivo é uma blasfêmia, uma falta de educação.
“O sol é a tensão mágica do silêncio.” (p. 41)
“Os bichos me fantasticam.” (p. 48)
“Eu te conheço todo por te viver toda. Em mim é profunda a vida.” (p. 52)
“O excesso de mim chega a doer e quando estou excessiva tenho que dar de mim como o leite que se não fluir rebenta o seio.” (p. 80)
Rebeldia
“Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada.” (p. 22)
– Me intriga demais como as pessoas, que leram Clarice na adolescência, reagiriam à leitura depois de adultos. Continuam encantados ou passa? Passa mas continuam encantados pela nostalgia do encantamento ou pelo que o texto é? O que você acha?
“Não gosto é quando pingam limão nas minhas profundezas e fazem com que eu me contorça toda. Os fatos da vida são o limão na ostra?” (p. 31)
– Boa!
“E eu tinha resolvido que ia dormir para poder sonhar, estava com saudade das novidades do sonho.” (p. 32)
– Eu ouço uma menina de 9 anos falando essa frase. E você? Acho de uma singeleza ímpar.
“Parece-me que pela primeira vez estou sabendo das coisas. A impressão é que só não vou mais até as coisas para não me ultrapassar. Tenho medo de mim, não sou de confiança, e desconfio do meu falso poder.” (p. 33)
– Lição que sempre ouvimos: não se leve tão a sério.
“Depois de certo tempo cada um é responsável pela cara que tem.” (p. 35-36)
– Ai que formidável. Vai, queridão, cresça e apareça!
“Quero ser enterrada com o relógio no pulso para que na terra algo possa pulsar o tempo.” (p. 44)
– É a rebeldia maior.
“Antes tenho que passar pelo vegetal perfumado. Ganhei dama-da-noite que fica no meu terraço. Vou começar a fabricar o meu próprio perfume: compro álcool apropriado e a essência do que já vem macerado e sobretudo o fixador que tem que ser de origem puramente animal. Almíscar pesado. Eis o último acorde grave do adaggio.” (p. 44)
– Clarice escreveu em revistas femininas e existe um lado absolutamente “perua” nisso. Mas no contexto de Água Viva, falar de perfume é adensar a sofreguidão da narradora.
“O ar é ‘it’ e não tem perfume. Também gosto. Mas gosto de dama-da-noite, almiscarada porque sua doçura é uma entrega à lua. Já comi geleia de rosas pequenas e escarlates: seu gosto nos benze ao mesmo tempo que nos acomete.” (p. 46)
– Que troço lindo de se falar da rosa!
“Pra te escrever eu antes me perfumo toda.” (p. 52)
– E pensar que o melhor uso de perfume tinha sido dada com a declaração de Marilyn Monroe sobre o Chanel nº 5.
“Todos os seres vivos, que não o homem, são um escândalo de maravilhamento […]” (p. 55)
– Jeito elegante de dizer que bicho é melhor que homem.
“Tem um lado da vida que é como no inverno tomar café num terraço dentro da friagem e aconchegada na lã.” (p. 69)
– E tem também o oposto, que é como não ter água pra tomar banho quando se chega em casa num dia qualquer de fevereiro.
“E eu sou a feiticeira dessa bacanal muda. Sinto-me derrotada pela minha própria corruptibilidade. E vejo que sou intrinsecamente má. É apenas por pura bondade que sou boa.” (p. 70)
– Há várias declarações igualmente boas que desconstroem o mito da boa mulher. Minhas preferidas: “Meninas boas vão para o céu, meninas boas vão para qualquer lugar”, que é bastante conhecida; e “Quando sou boa, sou ótima. Quando sou má, sou melhor ainda!”, de Mae West.
“Não me posso resumir porque não se pode somar uma cadeira e duas maçãs. Eu sou uma cadeira e duas maçãs. E não me somo.” (p. 74)
– Acho uma pena que Clarice não tenha solucionado essa soma. Lôca do jeito que ela era, pensa só no bicho de sete cabeças que sairia daqui.
“ Morrer deve ser uma muda explosão interna. O corpo não aguenta mais ser corpo. E se morrer tiver o gosto de comida quando se está com muita fome? E se morrer for um prazer, egoísta prazer?” (p. 83)
– Acho tão demais “o corpo não aguenta mais ser corpo”.
“Vejo as flores na jarra. São flores do campo e que nasceram sem se plantar. São amarelas. Mas minha cozinheira disse: que flores feias. Só porque é difícil amar o que é franciscano.” (p. 85)
– Clarice, espere 40 anos e a essas flores se dará a etiqueta: “colhidas como aparecem no campo”. Serão as mais apreciadas.
Quando a corda rói
“Quando eu morrer então nunca terei nascido e vivido: a morte apaga os traços de espuma do mar na praia.” (p. 29)
– Sim, apagam.
“O horrível dever é o de ir até o fim. E sem contar com ninguém.” (p. 53)
“Estou cansada. Meu cansaço vem muito porque sou pessoa extremamente ocupada: tomo conta do mundo.” (p. 60)
“Você há de me perguntar por que tomo conta do mundo. É que nasci incumbida.” (p. 61)
– Uma das coisas geniais na Clarice é este jeito que ela tem de finalizar assunto sério parecendo criancinha falando. Criança índigo, claro.
“Penso que agora terei que pedir licença para morrer um pouco. Com licença – sim? Não demoro. Obrigada.” (p. 65)
– Criança brincando de teatrinho. Tragicômico.
“O que estraga a felicidade é o medo.” (p. 66)
– Não é óbvio. Pense que era 1973.
“Porque é cruel demais saber que a vida é única e que não temos como garantia senão a fé em trevas […]” (p. 93)
– Por isso que vejo gente atrás de gente estudando budismo. Bem, ver a treva é o princípio da iluminação.
“Ah viver é tão desconfortável. Tudo aperta: o corpo exige, o espírito não para, viver parece ter sono e não poder dormir – viver é incômodo. Não se pode andar nu nem de corpo nem de espírito.” (p. 94)
– Água Viva tira o sono.
Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C)
(Se compartilhar ou citar, mencione a fonte. É simpático e eu agradeço.)
LISPECTOR, Clarice. Água viva: ficção. Rio de Janeiro, Rocco, 1998.