Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > autoconhecimento > A era do ressentimento – Luiz Felipe Pondé
Narcisistas, mimados e ressentidos – esta é a evolução do ridículo do mundo contemporâneo na régua de Pondé. Neste livro, de 2014, reeditado em 2019, o filósofo e professor Luiz Felipe Pondé se debruça sobre como a realidade da vida é anulada pra que ressentidos mantenham a todo custo sua autoestima. Mas como isso não é possível, continuam ressentidos. E esta é a característica de nossos tempos.
Umas das qualidades do olhar tão peculiar do autor sobre a realidade é a sinergia que ele cria entre filosofia e, digamos, a “publiciologia”, de publicidade, área que ele próprio, espezinhando a Sociologia, diz ser a verdadeira ciência social de nosso mundo (e as agências de publicidade, “templos da empiria contemporânea”). Pondé coordena o Labô, na PUC/SP, Laboratório de Política, Comportamento e Mídia que traz a desejada integração entre academia e vida real. A escrita dele produz a mesma integração.
Já disse em outras resenhas que Pondé é um exímio frasista (aforista) e criador de expressões. Quando você se impõe colecionar boas frases, tê-las em quantidade num livro pode até mesmo irritá-lo, porque você já prevê o trabalho que terá pela frente. Neste momento, estou lendo Amor para Corajosos, dele também, e confesso que me dá gastura saber que haverá muitas frases colecionáveis (risos).
Mas, por ora, sigo em frente com as melhores partes de A Era do Ressentimento.
De mimizentos a rendidos
“A tragédia da educação (ter virado autoajuda) se aproxima do destino da publicidade tornando-se politicamente correta. Ambas ridículas, refletindo a ´mentira do bem´como pressuposto do pensamento. Quanto mais a publicidade se tornar uma educação social, mais miserável será nossa condição de alienados da realidade. E a alienação em nome da nossa autoestima é puro ressentimento.” (posição 99 do Kindle)
– Não é óbvio entender como o politicamente correto é uma má forma de educação social proporcionada pela publicidade, sobretudo porque todos conseguimos pensar em exemplos de como esteriótipos foram sendo destruídos graças à propaganda. Mas talvez ajude se você pensar que a publicidade não adota o politicamente correto porque a sociedade já está mudada, mas apenas porque ela quer posicionar uma marca em um novo e inexplorado nicho lucrativo.
“Levarão mais a sério os gregos, romanos e hebreus, porque verão neles povos que buscavam o conhecimento, e não suas próprias imagens no rosto do universo.” (posição 135 Kindle)
“Se você tem mais de trinta anos e se considera a pessoa mais importante do mundo, já fracassou como adulto.” (posição 447 Kindle)
“No futuro esta será uma das razões para sermos considerados povos de uma era menor: a facilidade com a qual fazemos julgamentos positivos sobre nós mesmos. Deixamos de desconfiar da vaidade e com isso o mundo se escureceu.” (posição 405 Kindle)
“Na Grécia Antiga, quando oráculo de Apolo dizia para os homens ´Conhece-te a ti mesmo´, não significava conhecer nossas histórias pessoais da vida, como se pensa hoje depois da cultura da psicologia, mas sim ´saibas que tu és mortal, e nós, deuses, não´. O ressentimento nasce aí: inveja dos deuses.” (posição 319 Kindle)
“A Idade Média perderá seu título de era das trevas, e nós receberemos essas maldição. Lembrarão de nós como mimados, ressentidos e covardes.” (posição 132 Kindle)
– De fato, não é com nossas selfies que iremos conquistar a simpatia do futuro. Escrevendo esta resenha, me recordei de um episódio que me marcou e que apenas agora entendo. Meu primeiro vestibular foi para Artes Cênicas na USP/SP. A segunda fase consistia em prova de aptidão. Eu fazia teatro na escola, então fui lá diante de um comitê encenar. Não fui bem, eu acho. Depois, encontrei-me com os avaliadores com quem eu deveria conversar sobre uma das peças de teatro selecionadas: Esperando Godot, Édipo Rei e a terceira que não me lembro, talvez algum texto de Ibsen. Na minha entrevista, caiu Édipo. Lembro nitidamente de um dos avaliadores me perguntar “e você, qual seu sentimento em relação a Édipo”, ao que eu respondi, depois de refletir, “que os filhos não deveriam pagar pelos erros dos pais.” Nunca entendi qual havia sido o problema desta resposta, mas sempre soube que havia algo de errado com ela. Agora eu sei: está no cerne na tragédia grega fazer filhos pagarem pelos erros dos pais. Meus entrevistadores sabiam, mas eu não, que eu era um exemplar desta nova geração de ressentidos.
“O casal secular tem filhos apenas como projeto pessoal e com forte expectativa de retorno afetivo.” (posição 187 Kindle)
“Ter filhos nada tem a ver com realização pessoal, é mais da ordem da digestão, da respiração.” (posição 302 Kindle)
“Somos uns eugênicos que fingem odiar a ciência e amar a natureza que condena os filhos a serem limitados como nós. O casal religioso, quase sempre fundamentalista, tem mais filhos. Apensar dos seculares simpatizarem com a teoria darwinista como oposição à proposta religiosa criacionista e dogmática, eles esquecem que seleção natural é demografia: quem reproduz mais sobrevive.” (posição 191 Kindle)
– Sempre se projeta nos filhos – nós, os “inteligentinhos”, bem como os fundamentalistas. Mas nós pegamos este traço psicanalizável e o tornamos a própria razão da maternidade/paternidade: sacralizarmos nossa existência através deles. Adivinha? Enquanto pensamos que podemos ungir o mundo com nossos filhos, fundamentalistas procriam porque já se acham ungidos. De certa forma, eles não se sentem mais que Deus, enquanto conosco é quase o contrário.
“O homem contemporâneo é, talvez, o mais covarde que já caminhou sobre a Terra, sobre a qual deixará sua marca de incompetência em lidar com a morte, a dor e o fracasso.” (posição 221 Kindle)
– Nesta pandemia de covid19, surgiu aquela invocação de guerra “fique em casa” e nos alistamos pro batalhão do sofá e netflix.
“Uma nova praga: gente de bike na rua. Andam como se, com seu suor, abençoassem o mundo. Nada contra bicicletas, tudo contra playboys light que desfilam bikes como se isso os tornasse membros de um novo clero de puros.” (posição 518 Kindle)
– E os meninos têm barba e coque samurai, e as meninas têm franja e óculos com grandes e largos aros.
“Ressentidos são pessoas que passam a vida buscando não sentir o que a vida é: falta de sentido, indiferença, incerteza, sofrimento ou o que os psicanalistas chamam de ´falta´.” (posição 243 Kindle)
“É comum nos referirmos às pessoas como coitadas por terem que enfrentar a vida. Algo que, antes, era considerado óbvio – a vida não tem garantias – , hoje se tornou um erro cósmico.” (posição 662 Kindle)
“O ressentimento é uma forma de cegueira espiritual.” (posição 253 Kindle)
“Não será a coragem, a disciplina, o medo, o desespero existencial que farão a história das mentalidades de nossa era, mas o sentimento de que merecemos mais do que temos.” (posição 260 Kindle)
– Gosto de pensar que quando um zeitgeist surge, seu contraponto também nasce. Talvez o anarcocapitalismo pode ser a postura que vá equilibrar esta ideia absurda de que temos mil e um direitos e nenhum dever, que vá equilibrar o vitimismo de nossa era.
“Direitos não garantem amor.” (posição 397 Kindle)
– O contexto desta frase precisa ser explicado: Pondé diz que o feminismo nos trouxe direitos, mas não o amor. Pode ser.
“O que vai matar o mundo contemporâneo são seus sucessos, e não seus fracassos. Sucesso na democracia tornando a vida irrespirável de tantos direitos. Sucesso na medicina nos fazendo viver muito sem ter ninguém com quem viver. Sucesso na solidão feita de liberdades.”(posição 426 Kindle)
– Entenda que as liberdades citadas aqui não têm nada a ver com a liberdade implícita no conceito do anarcocapitalismo que eu trouxe lá em cima.
“O mal-estar romântico se caracteriza pela sensação, muitas vezes vaga e imprecisa, de que se perdeu algo quando se atingiu as certezas científicas, a vida eficaz, os direitos democráticos, os ´avanços´do narcisismo como forma de personalidade autocentrada.” (posição 208 Kindle)
– Gostaria de perguntar ao Pondé se ele acha que os terraplanistas de hoje são os românticos de antes.
“Com a morte do amadurecimento, morre o narrador, como diria o filósofo alemão Walter Benjamin. Ninguém mais assume a responsabilidade de falar do significado da vida.” (posição 356 Kindle)
– Frequentei algumas oficinas literárias. Em uma delas, discuti por que tínhamos que recusar ao narrador onisciente. Me responderam que ninguém mais acreditaria nele. Achei uma resposta de alguém que vive na bolha literária. Nesta época, a saga Harry Potter chegava ao final nos cinemas e J. K. se tornava uma das mulheres mais ricas do planeta.
“Se Freud dizia que amadurecer é aceitar uma orfandade, o amadurecimento passou a ser considerado um modo de opressão. Coitados de todos nós, que somos obrigados a suportar essas ladainha daqueles que não conseguem compreender o que, desde a tragédia grega, se sabe: a vida nunca teve garantias. Também não acho isso agradável, mas, talvez, como pensava o escocês Adam Smith, a autonomia seja a escolha moral possível diante do simples aniquilamento de nossa heroica humanidade abandonada na face da Terra.” (posição 672 Kindle)
– Culpam o (neo)liberalismo de todos os males das sociedades ocidentais, pela volta de conservadorismo. Deveriam culpar o coletivismo, que enfiou direitos e sepultou a autonomia dos indivíduos com suas “neuroses do desejo”. Liberais têm uma noção mais trágica na vida.
“É urgente sobrevivermos ao ridículo do mundo contemporâneo.” (posição 123 Kindle)
– Não tenho certeza se haja qualquer coisa que possamos fazer no prazo de uma vida que salve o mundo contemporâneo.
“No mundo contemporâneo, pensamos que podemos votar contra o medo, o fracasso, a inveja, a mentira e a hipocrisia.” (posição 697 Kindle)
“São políticas do ressentimento toda forma de política que afirma termos direito à felicidade (e não à sua procura, como diz sabiamente a constituição dos Estados Unidos).” (posição 717 Kindle)
– Tudo isso, o ridículo do mundo.
“Espiritualidade nada tem a ver com cursos de três dias sobre sabedoria egípcia antiga ou textos védicos. Espiritualidade tem mais a ver com colocar filhos para dormir todos os dias do que com aprender línguas mortas.” (posição 289 Kindle)
– Depois do Êxtase, Lave a Roupa Suja, leia a resenha deste livro e entenderá.
“Um deus que serve ao homem não vale a pena ser adorado.” (posição 292 Kindle)
– Por isso que a ciência não pode se transformar em um deus. Deixemos a ciência ser apenas ciência.
“O ressentimento faz de nós incapazes de ver algo simples: o universo é indiferente aos nossos desejos.” (posição 750 Kindle)
“Sabemos que a marca essencial de toda forma de paraíso imaginado é a de um lugar no qual desejos e necessidades são iguais e harmônicos. Portanto, um lugar no qual o círculo forma um quadrado.” (posição 763 Kindle)
– Apenas crianças muito pequenas deveriam se entreter tentando passar quadrados através de círculos, como naquele brinquedo de formas.
“A generosidade, irmã gêmea da gratidão, só sobrevive num terreno em que sabemos que nada nos é de direito, mas que tudo nos foi dado de graça.” (posição 907 Kindle)
– É um conceito interessante pensar que a generosidade mingua no coletivismo e floresce no individualismo.
“Não há cura para uma verdade, apenas modos de enfrentá-la ou de evitá-la.” (posição 271 Kindle)
– E você já sabe qual é a opção que nossa era escolhe, né?
“A verdadeira sabedoria passa, em algum momento, pelo desprezo do mundo à sua volta.” (posição 125 Kindle)
– De fato, isso mantém nossa sanidade.
“Mais recentemente, ele [Zygmunt Bauman] voltou ao tema do deserto, mas para descrever o que poderíamos chamar de deserto da privacidade. Um dia, a privacidade foi um bem a ser defendido a sete chaves. Hoje, ela é um tormento, porque quanto mais privavidade temos, mas claro é o vazio das horas. A saída é buscar ser invadido pelos outros num delírio de celebridades e redes sociais. O sintoma indica claramente a patalogia: a candente dissolução de qualquer subjetividade real. O vazio do sujeito se manifesta no desespero por alguém que ´curta´ as bobagens que posta. Logo, a psicologia do sujeito será uma ciência morta com a alquimia, porque chegaremos à conclusão de que ser um sujeito é um vício de gente atrasada. E a psicologia social e a sua falsa ideia de construção social de um sujeito socialmente ´são” só ampliará a morte do sujeito real.” (posição 632 Kindle)
– Embora eu tenha sido muito feliz na escola salesiana onde estudei dos 5 aos 17 anos, ela me fez pegar ojeriza de toda palavra que tem social no meio. Talvez porque fôssemos obrigados a nos confessar.
“[…] ninguém suporta sustentar pessoas que querem ser reconhecidas o tempo inteiro em suas irrelevâncias. a mania de reconhecimento, um vício de sociedades ricas como a Europa ocidental, é um insulto a quem, de fato, já sofreu na face da Terra.” (posição 782 Kindle)
– Por isso eu acho o Instagram infinitamente mais chato que o Facebook.
“O deserto nos lembra o pó e o fim último das coisas. Ele nos demanda reverência e silêncio.” (posição 103 Kindle)
– Pondé escreveu este livro voltando de Israel e sobrevoava desertos no retorno ao Brasil. Para mim, o que representa o fim é quando viajo e vejo campos e campos de soja onde antes havia mata.
Rendidos à corda bamba
“Há muito que leio a Bíblia, apesar de ter nascido sem o órgão da fé.” (posição 679 Kindle)
“Não consigo ser nem ateu nem crente, permaneço preso a um mundo que pouco se interessa pela vida eterna, mas que não padece nem da ilusão da fé nem da arrogância infantil do ateísmo.” (posição 825 Kindle)
“Quem lê um pouco mais sabe como é difícil ter opiniões, e, acima de tudo, como é arriscado tê-las”. (posição 869 Kindle)
– Nunca achei que estar em cima do muro fosse uma posição isenta. Toma-se porrada dos dois lados, tanto quanto se é tentado por ambos.
Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2020
(Se compartilhar ou citar, mencione a fonte. É simpático e eu agradeço.)
PONDÉ, Luiz Felipe. A era do ressentimento. São Paulo: Globo Livros, 2019 – 2ª edição – versão Kindle