Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > filosofia > A coragem da verdade – Michel Foucault
Se tivermos feito faculdade de Humanas, a chance de termos ouvido falar de Foucault é grande. Ou pelo menos era quando eu mesma cursava Linguística no início dos anos 1990 na Unicamp. Mas ter estudado a fundo este autor, isto já seriam outros quinhentos. Como bolsista de iniciação científica em um projeto sobre a historiografia da imprensa feminina e feminista do final do século XIX até meados do século XX, acabei sendo introduzida a Foucault da melhor maneira: por minha orientadora na época, Profª Margareth Rago. Por causa dela, comprei uns 4 livros de Foucault; por causa das revistas femininas que me couberam estudar no projeto, não li nenhum deles pois caí de amores pela moda e passei o último ano da faculdade devorando toda (pouca) literatura sobre moda que eu pudesse achar, enquanto cumpria os últimos créditos na linguística.
Então, meu real primeiro encontro com Foucault foi através deste livro, citado em um seminário da Profª Margareth que vi no You Tube (eu adoro esta mulher!). Você sofrerá pra ler Foucault se se encontrar em uma das condições abaixo:
O motivo de eu insistir nisto é porque as redes sociais – epicentro da experimentação do marketing atual – é o túmulo da verdade com suas falsas autoridades, seus rasos influenciadores, suas orto-obsessões, suas estratégias pausteurizadas. Para o bem ou para o mal, li A Coragem da Verdade pensando demais nas redes sociais: primeiro porque Foucault inicia seu curso comentando sobre as diversas práticas do dizer-a-verdade (as aleturgias) como as da profecia, da sabedoria e da técnica. Assim, o profeta, o sábio e aquele que ensina praticam o dizer-a-verdade, mas o fazem de forma diferente do parresiasta. Sendo eu uma professora, sendo as redes sociais o corredor de minha sala de aula, vi-me obrigada a refletir sobre minha aleturgia. Segundo, porque Foucault faz uma longa crítica da parresia (verdade) democrática – e nada mais atual do que nossos sofrimentos em torno do tema democracia, tão afetada na Era d.F. (depois do Facebook).
Algo ainda que gostaria de falar sobre este livro – e porque sou tradutora de francês – é a qualidade do trabalho de Eduardo Brandão para esta edição da Martins Fontes. Traduzir filosofia já é um desafio colossal – talvez da mesma monta que traduzir poesia. Traduzir um sujeito que traz diversos neologismos é algo descomunal. Tanto a tradução quanto a revisão do texto são de altíssima qualidade, o que demostra a capacidade acima da média na edição de uma obra tão densa. Foucault é muito didático e leitores pouco afeitos a seminários podem se enfadar porque ele não chega rapidamente ao xis da questão. Azar o deles: uma parte significativa do prazer deste livro é a construção do texto, mostrando como um pensador da estatura de Foucault não apenas domina a língua como domina as próprias ferramentas do pensamento.
Finalmente, pelo fato deste seminário ter sido dado a poucos meses da morte de Foucault (ele faleceu em decorrência da AIDS em 25/06/1984), ficamos com uma sensação de expectativa em todo o livro. Em algumas aberturas, ele comenta sobre sua saúde e a constatação de estar tão lúcido e de o sabermos tão próximo de sua morte é angustiante. Foucault recebeu tardiamente o diagnóstico de AIDS. Tanto se duvidava de que poderia ser AIDS, quanto havia o receio – por parte dos médicos que o trataram – de se confirmar que o grande intelectual da França daquela época havia contraído a doença. Vale a pena você buscar na internet o testemunho do companheiro de Foucault relatando toda a dificuldade do recebimento do diagnóstico. Em 1984 eu tinha 11 anos de idade. Se esta geração tem a covid-19 pra lhes marcar, minha geração teve a AIDS. Mas ela marcou certamente muito mais suas primeiras vítimas, com o preconceito, o descaso, a incompreensão e a falta de empatia. A coragem, outra importante palavra do livro, tem sua raiz na palavra coração. É este fator – o coração – que torna este livro e a vida de seu autor tão significativos.
Abaixo, algumas citações comentadas a título de “melhores partes”.
PARRESIA
“Essa espécie de pacto, entre aquele que assume o risco de dizer a verdade e aquele que aceita ouvi-la, está no cerne do que se poderia chamar de jogo parresiástico.” (p. 13)
– Logo no início do livro, Foucault distingue a parresia da retórica no sentido de que, aqui, quem diz a verdade não necessariamente está comprometido com ela, mas quer apenas impô-la a alguém.
“A passagem do puro ao impuro, a passagem do obscuro ao transparente, a passagem do transitório e do fugidio ao eterno é o que constitui, marca ao menos, a trajetória moral pela qual o sujeito pode se constituir capaz de verdade (capaz de ver a verdade, de dizer a verdade).” (p. 110)
– Foucault chama isso de catarse da verdade.
ENSINAR
“Todo mundo sabe, e eu em primeiro lugar, que ninguém precisa ser corajoso para ensinar.” (p. 24)
– Aqui, a questão é que o professor não arrisca ao dizer a verdade, pois ele se filia à tradição do saber, ao passo que o parresiasta arrisca (literalmente, pois Foucault falava de Sócrates, o parresiasta prototípico) sua vida.
DEMOCRACIA
“Por que a democracia não permite essa distinção entre o discurso verdadeiro e o discurso falso? Porque em democracia não se pode distinguir o bom e o mau orador, o discurso que diz a verdade e é útil à cidade, do discurso que diz a mentira, lisonjeia e vai ser nocivo.” (p. 37)
“[…] a democracia não é o lugar privilegiado da parresía, é, ao contrário, o lugar no qual o (exercício) da parresía é mais difícil.” (p. 51)
– Quando Foucault discute a parresia na monarquia, na aristocracia e na democracia, esta perde porque não é possível fazer distinção ética entre todos os representantes, já que a premissa é de que todos valem o mesmo.
PRÁTICA DE SI
“E é o que repete incansavelmente Sócrates ao longo de toda a Apologia: estimulando vocês a cuidar de si mesmos, é à cidade inteira que sou útil.” (p. 78)
– Você já deve ter ouvido uma citação de Gandhi: seja você a mudança que quer ver no mundo. Pondé também o diz assim: quer mudar o mundo mas não arruma nem a própria cama.
“Só pode haver verdadeiro cuidado de si se os princípios formulados como princípios verdadeiros forem ao mesmo tempo garantidos e autenticados pela maneira como se vive.” (p. 210)
– Seria interessante continuar este debate à luz do desejo atual de que a garantia e autenticidade venham de fora de si, já que não bastam mais virem de si. As discussões identitárias, por exemplo, passam pela validação do outro, uma vez que a validação de si não surge sem a aprovação do outro.
CINISMO
“É uma metáfora que Epicteto utiliza aqui, pois ele diz que o cínico é enviado como batedor à frente, além do front da humanidade, para determinar o que nas coisas do mundo pode ser favorável ao homem ou pode lhe ser hostil.” (p. 146)
– Conhece aquele ditado “não mate o mensageiro”? O cínico é aquele que morre por ser o portador da mensagem.
“Para poder desempenhar o papel do que diz a verdade e acorda os outros para ela, é preciso ser livre de qualquer vínculo.” (p. 149)
– Há no Hinduísmo, mas não lembro o nome (George Feuerstein em A Tradição do Yoga tem um capítulo muito bom sobre eles), homens que, a exemplo dos cínicos na Antiga Grécia, saem eles também com cajado na mão, nus, sujos, defecando na rua e masturbando-se em praças, para chocar as pessoas com a verdade crua da existência animal dos humanos.
“A arte moderna é o cinismo na cultura, é o cinismo da cultura voltada contra ela mesma.” (p. 165)
– A institucionalização das PICS seria o cinismo da medicina moderna, trazendo sua crítica para dentro do ambiente que gerou as próprias causas de ser tão criticada?
“O cinismo está no cerne da filosofia e o cínico gira em torno da sociedade sem ser admitido nela. Paradoxo interessante.” (p. 178)
– Bom, penso que está citação responde à minha pergunta acima.
“A vida pública cínica será portanto uma vida de naturalidade exposta e inteiramente visível, fazendo valer o princípio de que a natureza nunca pode ser um mal.” (p. 224)
– Nem um mal, nem um bem.
“O cínico é um filósofo em guerra. É aquele que trava, para os outros, a guerra filosófica.” (p. 264)
“O cínico é um funcionário da humanidade em geral, é um funcionário da universalidade ética.” (p. 266)
“O cínico deve ser o zelador de seu próprio pensamento.” (p. 274)
– Para o final do livro, Foucault começa a tratar da parresia dentro do ascetismo cristão, a refletir sobre a parresia ser o ato de se expor a Deus. Mas, contrariamente ao cínico da Antiguidade Clássica, o asceta cristão não se ocupa deste mundo, mas do “outro” mundo.
O HERÓI FILOSÓFICO
“O heroísmo filosófico, a ética filosófica não vão mais encontrar lugar na própria prática da filosofia, que se tornou ofício de ensino, mas nesta outra forma de vida filosófica, deslocada e transformada, (ou seja,) no campo político: a vida revolucionária. Exit Fausto, entra o revolucionário.” (p. 187)
– Desconfio que chegamos a um cansaço com revolucionários. Todo o século XX foi isto. Daí a verdade estar tão em baixa…
A VERDADEIRA VIDA
“Ser soberano sobre si e ser útil aos outros, gozar a si mesmo e somente a si mesmo e, ao mesmo tempo, proporcionar aos outros a ajuda de que necessitam em seus embaraços, suas dificuldades ou, eventualmente, suas desgraças não passa, no fundo, de uma só e mesma coisa.” (p. 241)
– Há um pequeno livro de Vivekananda, chamado Karma Yoga (título que pode ser traduzido também como “yoga da ação desinteressada”) que me parece conversar com esta conclusão: o karma yogi está no e para o mundo, mas não submetido ao mundo.
Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2021
FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II: Curso no Collège de France (1983-1984). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.