Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > ficção > A comédia humana – vol. 1 – Honoré de Balzac
Tudo em A Comédia Humana é superlativo: a quantidade de páginas, a qualidade das histórias, a intenção de historiografar os costumes, a ambição de seu autor, Balzac. E nesta edição completa publicada em 2012 pela Editora Globo, o organizador e comentador Paulo Rónai reforça o caráter de obra prima dos 7 volumes, como os torna acessíveis a leitores brasileiros, quase 2 séculos depois de terem sido escritos.
Não é coisa pouca organizar obras completas, ainda mais de um escritor que publicou majoritariamente em jornais, fragmentando assim sua produção. Felizmente, Balzac, já em 1842, começou organizar suas histórias dentro do conjunto que intitulou de A comédia humana. Coube a gerações futuras de entusiastas e estudiosos de seus textos completar o trabalho, posto que o autor viria a falecer 8 anos depois, em 1850. (Um adendo, A comédia humana é quase toda a obra de Balzac. Ele escreveu um ou duas peças, alguns contos e, postumamente, suas cartas também foram publicadas.)
Nascido em 1799, Balzac teve pouco mais de 3 décadas pra construir o mais ambicioso retrato dos costumes de uma época particularmente excitante da história francesa, aquela que decorreu da abolição do absolutismo do Antigo Regime com a revolução de 1789 para a instituição de um novo império em 1851 com Napoleão III. Um período de profundas transformações sociais que foi retratado por uma safra de escritores brilhantes em vários países da Europa, como por Dostoievsky na Rússia e Charles Dickens na Inglaterra.
Sempre pensei que, se a literatura russa do século XIX iniciou pelos temas da guerra e da paz (Tolstoi), a francesa pelos de amor e vingança (Sade e Laclos). Assim, embora esse século tenha gerado um Victor Hugo e um Émile Zola na França, uma certa fixação nos assuntos de alcova e intrigas se tornou assunto para muito do que viria depois, como em Dumas pai, Dumas filho, Flaubert, Sand, Nerval.
Leitores com menos paciência tendem a achar Balzac descritivo demais. Ele pode ser, de fato, como Rónai deixa claro na introdução de pelo menos dois de seus livros: Modesta Mignon e Uma estreia na vida. O primeiro, uma novela que retrata os esforços de garantir uma herança através de um casamento em que se ilude a noiva, consta deste Volume 1 que ora resenho. Outras novelas incluídas no tomo são: Ao “Chat-qui-pelote”, O baile de Sceaux, Memórias de suas jovens esposas, uma novela epistolar, muito em voga à época, e A bolsa. Mas vencer as descrições iniciais que antecedem a ação é totalmente possível quando o leitor aprende que, em Balzac, o cenário é mais um personagem, tendo como função moldar o comportamento dos atores humanos da narrativa.
Meu primeiro contato com Balzac foi no início da faculdade de linguística, quando tive aula sobre literatura francesa com o professor Luiz Dantas do IEL na Unicamp. Ele nos fez ler Ilusões perdidas. Eu, que já amava a literatura francesa, que a consumia na forma de romances de capa e espada e do ciclo arturiano, e na forma da poesia de Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé, conheci o grande romance francês. Foi um assombro. Sonhava com Lucien de Rubempré, queria ter vivido em seu tempo pra frequentar os mesmos salões, ver a luta intestina entre nobres empobrecidos e burgueses sem nobreza. Nunca mais parei de ler Balzac e, com ele, pude completar minha santíssima trindade da literatura: Shakespeare, Machado… e Balzac.
Ganhei A comédia humana como presente de aniversário de meu marido, a quem eu havia dado as obras completas de Freud, ou pelo menos as que já estavam publicadas. Nunca havia pegado os volumes pra ler. Encadernados em capa dura, são extremamente leves, com páginas costuradas formando uma fita branca e preta em zigue-zague por baixo da lombada. Elas estão todas amareladas. Fui lendo Balzac em títulos avulsos, mas sempre com a intenção de um dia ler os volumes da edição do Rónai na sequência indicada. Começo a fazê-lo agora.
As citações contemplam os 5 títulos do Volume 1, além da introdução escrita em 1842 pelo autor. Me será mais conveniente resenhar os volumes que as obras individualmente. Assim, ao lado de cada citação, marquei o nome do título do livro.
Têmpera
“Pouca obra dá muito amor-próprio, muito trabalho dá muitíssima modéstia.” (p. 101, Prefácio à Comédia Humana)
– Essa seria a definição de um “operário” das letras, com a qual Balzac talvez pudesse concordar, exceto que ele sempre almejou a distinção da nobreza. Rónai comenta que, em uma de suas correspondências, Balzac reclamava de trabalhar 15 horas por dia para pagar suas dívidas (ele tinha muitas), sem tempo para sequer tomar banho. O surpreendente é que, com uma vida tão sedentária quanto mental, ele tenha chegado aos 51 anos de idade! Dizem que a imaginação conserva a alma jovem. Balzac deve ter se valido disso para sustentar o próprio corpo e aguentar as preocupações financeiras que seu estilo de vida esbanjador lhe trazia.
“A paixão é toda a humanidade. Sem ela, a religião, a história, o romance, a arte seriam inúteis.” (p. 114, Prefácio à Comédia Humana)
– Em 1994, quando eu fazia iniciação científica em um arquivo associado ao departamento de história do IFCH da Unicamp, o comezinho apenas começava a ser autorizado como tema pra historiografia. Margareth Rago contava como ela descobria, ainda em seu mestrado, que um historiador não precisava apenas falar de guerras e política, mas também do afeto, das subjetividades. Minha convivência com ela e minhas leituras de Balzac acabaram me convencendo que a História, aquela que a gente grafava com inicial maiúscula, é sempre moldada por caprichos de alguns poucos. Permaneço convencida.
“Não professo a crença de um progresso indefinido, no que se refere às sociedades; creio no progresso de homem quanto a si mesmo.” (p. 114, Prefácio à Comédia Humana)
– Balzac seria um conservador, embora eu não creio que alguém indiferente à pobreza, ao sofrimento das classes desfavorecidas – do contrário não teria escrito A comédia. Ele seria um conservador no sentido que isso se opunha ao espírito revolucionário da época. Essa sua afirmação, no entanto, me fez lembrar de Mahatma Gandhi, quando disse “seja você a mudança que quer ver no mundo”. Gandhi foi um revolucionário, ainda que indiretamente.
” (…) a admiração é sempre uma fadiga para a espécie humana.” (p. 215, O baile de Sceaux)
– O cancelamento, então – agora dá pra entender -, é apenas cansaço de admirar a pessoa.
” – Você é uma pestezinha – disse meu pai. – Se lhe falo seriamente, você vem com gracejos; quando eu gracejo, você fala como se fosse uma embaixatriz.
” – O amor vive de contrastes – respondi.
“Ele riu até as lágrimas.” (p. 332, Memórias de duas jovens esposas)
– Escrever bons diálogos é habilidade de todo grande narrador. Dar vida ao caráter de um personagem por meio de travessões separa os verdadeiros escritores dos autores de diários íntimos.
“Não se pode sempre fazer diálogos; demandam viveza, rapidez, saídas, que o espírito traz em si como as plantas produzem suas flores que se encontram mais facilmente esperando-as do que buscando-as.” (p. 491, Memórias de duas jovens esposas)
– Pronto, Balzac me justificou.
“O que me surpreende mais cada dia é a atividade que o amor comunica à vida. Que interesse adquirem as horas, as ações, as mais pequenas coisas! E que admirável confusão do passado, do futuro no presente! Vive-se nos três tempos do verbo.” (p. 367, Memórias de duas jovens esposas)
– Por serem irresistíveis essas atividades é que continuamos nos apaixonando, apesar da alta taxa de fracasso.
“O gracejo, meu anjo, é filho da ignorância: zombamos daquilo que não conhecemos. ‘Nas situações em que os recrutas riem, os veteranos ficam sisudos’ (…).” (p. 406, Memórias de duas jovens esposas)
– Suponho que haja uma situação que desminta a frase: sábios riem, porque são veteranos que se recordam se terem sido recrutas.
“A dúvida é o nosso duelo com nós mesmas, e nela nos fazemos terríveis ferimentos.” (p. 499, Memórias de duas jovens esposas)
– A dúvida viceja onde há opções. Sendo isso verdadeiro, entendemos como essa sociedade de opções implica em prejuízo à saúde mental, que dos adoecimentos possíveis, parece ser aquele que é mais autoinfligido.
“Estou quite com a vida. Há seres que têm sessenta anos de serviço nos registros do mundo e que de fato não viveram dois anos, e inversamente eu pareço ter apenas trinta anos, mas na realidade tenho sessenta anos de amor.” (p. 512, Memórias de duas jovens esposas)
– Amar, sofrer de amor: o que o primeiro acrescenta de anos a viver, o segundo subtrai em dobro.
“Não há certa grandeza em saber que se ama bastante para amar ainda, no ponto em que o amor dos outros se extingue e morre?” (p. 550, A bolsa)
– Olhe, amiga, deve haver; mas, puxa, quem se anima em pagar de Madre Tereza?!
“A maioria dos dramas está nas ideias que formamos das coisas. Os acontecimentos que nos parecem dramáticos nada mais são do que os assuntos que nossa alma converte em tragédia ou comédia, ao sabor de nosso caráter.” (p. 577, Modesta Mignon))
– Aham, tente convencer as pessoas disso.
“A melodia está para a música como a imagem e o sentimento estão para a poesia; é uma flor que pode desabrochar espontaneamente. Por isso, os povos têm tido melodias nacionais antes da invenção da harmonia. A botânica surgiu depois das flores.” (p. 604, Modesta Mignon)
– Primeiro, nos emocionamos; depois, claro, entendemos.
“Todas as grandes inteligências se adstringem a algum trabalho mecânico, a fim de se assenhorearem do pensamento. Spinoza polia vidros para óculos, Bayle contava as telhas dos telhados, Montesquieu se ocupava de jardinagem. Com o corpo assim domado, a alma abre as asas em plena segurança.” (p. 617, Modesta Mignon)
– Rudolf Steiner que a gente anda para pensar, quando se harmonizam os ritmos cardíaco e pulmonar, liberando o pensamento; coaches dizem que é preciso oscilar, quando atividades corporais reenergizam o mental. Sabemos disso há tempos, não?
“Algumas vezes, meu amigo, levantei-me pela manhã num inconcebível estado de ternura. Uma espécie de paz, terna e divina, dava-se a ideia de céu.” (p. 668, Modesta Mignon)
– Sou eu quando acordo pela manhã com chuva. Não contém ironia. Não apenas gosto de chuva, como de frio. Brinco que, em relação ao frio, sou como as cerejeiras em Curitiba: floresço no inverno.
“Com efeito, quando numa jovem o coração esfria, a cabeça torna-se sã; observa tudo, então, com certa rapidez de julgamento, com um tom de gracejo que Shakespeare pintou admiravelmente na sua personagem Beatriz em Muito barulho por nada.” (p. 744, Modesta Mignon)
– Se for mais fácil, assista ao filme, de 1993, que tem Emma Thompson como Beatriz e Kenneth Branagh como seu rival Benedick. O filme faz bastante jus à peça. Você entenderá que Shakespeare, antes de ser alçado ao panteão da alta cultura, era sobretudo pop em sua época, divertindo e emocionando como os melhores artistas da Brodway que sobem ao palco hoje em dia.
“Um país que sabe vencer tais batalhas deve saber cantá-las.” (p. 762, Modesta Mignon)
– Essa ideia é cristalina: não uma só batalha ganha que não tenha seu hino, e a tal ponto que podemos prever a derrota se um hino já não tiver sido ao menos cantarolado no seu refrão.
“E seu amigo Canalis, esse, dormia, com o sono dos triunfadores, o sono mais suave depois do dos justos.” (p. 773, Modesta Mignon)
– Quando alguém vier com o papo de que dorme com a consciência tranquila e você quiser ser bem cínico, pode citar Balzac para demonstrar que o vencedor também tem um sono suave.
“A sobrevivência de um povo é obra de seus homens de gênio.” (p. 784, Modesta Mignon)
– Como gostaríamos que isso não fosse verdade.
” – Creio que Butscha tinha razão. Deus é um grande paisagista – disse Canalis, contemplando aquela perspectiva única entre as que tornam as margens do Sena tão justamente famosas.” (p. 854, Modesta Mignon)
– Como paisagista, sua obra prima foi a baía de Guanabara.
” (…) ele respondeu que se estava se entregando a pensamentos, uma escusa que os autores têm a mais do que os outros homens.” (p. 824, Modesta Mignon)
– Talvez tenhamos que escusar a todo o gênero masculino irem pra caixinha do nada…
A vida que insiste ser como é
“O acaso é o maior romancista do mundo; para ser fecundo, basta estudá-lo.” (p. 108, Prefácio à Comédia Humana)
– Cronistas são um tipo de escritor atento ao acaso. Mas se eles pegam o acaso e mantêm-no pequeno para apontar o insólito do cotidiano, em Balzac o acaso cresce e sela destinos, alguns trágicos, outros bem-aventurados.
“Para criar muitas Virgens, é preciso ser Rafael. A literatura, sob esse ponto de vista, está, talvez, abaixo da pintura.” (p. 116, Prefácio à Comédia Humana)
– Quando se escolhe uma expressão artística, de antemão se deve saber o que ela lhe limitará fazer. É mais difícil chorar diante de um quadro que ouvindo uma música, como é mais fácil imaginar lendo-se um texto que vendo uma pintura. Penso que os artistas escolhem sua expressão por temperamento. Por que alguém escolhe desenhar em vez de esculpir, dançar em vez de atuar? Claro que talento determina a escolha, mas há uma predisposição interna, me parece, que leva a expressão da alma sempre pros limites que já lhe são predestinados.
“Os espíritos vulgares não podem avaliar os sofrimentos contínuos do ser que, unido a outro pelo mais íntimo de todos os sentimentos, é forçado a recalcar a todo o instante as mais caras expansões de seu pensamento e a fazer voltar ao nada as imagens que uma potência mágica o obrigada a criar.” (p. 168, Ao “Chat-qui-pelote”)
– Não é possível que Balzac estivesse falando de si pela boca de seu personagem, pois parece que nunca permitiu que ninguém calasse seus grandes projetos de vida, ainda que lhe recriminassem de intentá-los. Mas Balzac retratou muitos homens – e talvez mais mulheres – que, forçados pela conveniência de um casamento, de um cargo político, de um parente doente, fez calar em si os próprios sonhos de grandeza. Comentando essa citação, me lembro particularmente do filme A esposa (2017), com Glenn Close, no qual ela faz o papel da esposa que serviu de ghost writer ao marido até que um prêmio Nobel entregue a ele destampa todo o ressentimento que ela guardou durante anos.
“Nossa mãe pressentiu que os acontecimentos, um dia, favoreceriam as suas esperanças. O desejo de uma mãe é talvez um contrato formado entre ela e Deus.” (p. 312, Memórias de duas jovens esposas)
– Firmado, tenho minhas dúvidas. Mas que foi feita uma minuta, ah, isso foi!
“O amor, querida, contém em si um fenômeno tão raro que se pode viver a vida inteira sem encontrar a criatura a quem a natureza conferiu o dom de nos fazer felizes.” (p. 318, Memórias de duas jovens esposas)
– A diferença entre um generoso escritor como Balzac e nós é que descrevemos a má sorte no amor como um problema de nossas personalidades.
“O amor, creio eu, é um poema inteiramente pessoal. Não há nada que não seja ao mesmo tempo verdadeiro e falso em tudo o que os autores escrevem.” (p. 328, Memórias de duas jovens esposas)
– Ah, apenas porque os autores também estão escrevendo seus poemas.
“Achamo-nos entre dois sistemas: ou constituir o Estado pela família, ou constituí-lo pelo interesse pessoal: a democracia ou a aristocracia, a discussão ou a obediência, o catolicismo ou a indiferença religiosa, eis a questão em poucas palavras.” (p. 331, Memórias de duas jovens esposas)
– O Brasil conseguiu a proeza de constituir o Estado com famílias com interesses pessoais.
“Felipe ama tanto que acho-o digno de ser amado.” (p. 371, Memórias de duas jovens esposas)
– Quem nunca concedeu o amor que não sente por o terem devotado a si?
“Há dois amores: o que ordena e o que obedece; são diferentes e dão nascimento a duas paixões, e uma não é a outra; para ter seu quinhão da vida, é possível que uma mulher precise conhecer uma e outra. Poderão confundir-se essas duas paixões? Um homem a quem inspiramos amor também poderá inspirar amor?” (p. 379, Memórias de duas jovens esposas)
– Um cínico responderia à última pergunta: apenas como forma de compaixão.
“Não quero vê-lo, nem tímido nem fátuo, não quero que trema pelo receio de perder minha afeição porque seria um insulto, mas não quero tampouco que a segurança lhe permita carregar despreocupadamente seu amor.” (p. 381, Memórias de duas jovens esposas)
– Quando leio esses grandes romancistas da alma humana, parece-me que ninguém mais hoje seria capaz de sentir o que descreveram, mas por um motivo bem insólito: perdemos o vocabulário que permitia acessar todas as cores dos sentimentos. Sem saber descrever o que sentimos, como saber que sentimos o que estamos sentindo?
“Um único dos meus dias te bastará, de resto, pois todos se assemelham e se reduzem a dois acontecimentos: as crianças estão doentes, ou não estão.” (p. 453, Memórias de duas jovens esposas)
– Pense em todas as séries recentes sobre maternidade. Balzac já descrevia o que ocorre 150 anos atrás.
“Se soubesse quanto mel e profundez existem num beijo quase tímido que se troca, no meio dessa santa natureza… é da gente crer que Deus nos fez somente para rezar-lhe assim.” (p. 488, Memórias de duas jovens esposas)
– Que sentença deliciosa! Algo que vale a pena comentar é que no romance Memórias de duas jovens esposas, estas são duas colegas de noviçado que acabam voltando à sociedade para casar. Então, quando um fala à outra que beijar é como orar, nós sabemos que elas estão gracejando, mas também podem estar acreditando nisso.
“Somente filhos amantes e amados podem consolar uma mulher da perda de sua beleza.” (p. 492, Memórias de duas jovens esposas)
– Suponho que sim, receber o amor de um filho e amá-lo é a recompensa que a maternidade traz por ter nos roubado o frescor. Também dizem que netos têm a mesma capacidade, senão maior.
“As coisas que não nos cansam, o silêncio, o pão, o ar são irrepreensíveis por não terem sabor; ao passo que as coisas que o têm e irritam os nossos desejos acabam por saciá-los.” (p. 494, Memórias de duas jovens esposas)
– Nunca nos cansamos de comer arroz com feijão. Mas um mês de fast food nos enfastia até de comer.
“(…) ora, o prazer ou a dor são uma febre da alma, essencialmente passageira, porque não pode ser suportada muito tempo. Fazer do excesso a própria vida, não é isso viver doente?” (p. 494, Memórias de duas jovens esposas)
– Em algum lugar certa vez li que hoje adoecemos de excessos (de comida, de estímulos), ao passo que antes se adoecia pelo que nos faltava. Faz sentido, não faz?
“Que crime de lesa-milhão, esse de demonstrar aos ricos a impotência do ouro!” (p. 574, Modesta Mignon)
– Caso perdido, esqueça. Todo mundo sabe que dinheiro manda comprar felicidade.
“Com setenta e dois anos, ele especulara em negócios de algodão, crente no gênio de Napoleão, sem saber que o gênio está tantas vezes abaixo como acima dos acontecimentos.” (p. 585, Modesta Mignon)
– Donde se deduz que dependemos fundamentalmente de sorte.
“A verdade do provérbio popular: ‘O hábito não faz o monge’ é sobretudo aplicável à literatura. É extremamente raro encontrar acordo entre o talento e o caráter.” (p. 630, Modesta Mignon)
– Sempre desconfiei que a disciplina é superestimada.
“Nada no homem é absoluto. É certo que o devasso malbaratará seu talento, que o ébrio o gastará nas suas libações, sem que o homem virtuoso possa conseguir talento por meio de uma boa higiene; mas também está provado que Virgílio, o poeta do amor, jamais amou uma Dido, e que Rousseau, o cidadão-modelo, tinha orgulho bastante para uma aristocracia inteira. Contudo, Michelangelo e Rafael possuíam o feliz acordo do gênio e da forma do caráter. O nos homens é, pois, quanto ao moral, o que a beleza é nas mulheres: uma promessa. Admiremos duplamente o homem no qual o coração e o caráter se igualem, me perfeição, ao talento.” (p. 630, Modesta Mignon)
– Pela dificuldade de encontrar espécimes humanos em que o coração e o caráter se igualam, sempre achei estúpida a ideia de homenagear figuras históricas dando seus nomes a locais públicos. Mas como o puxa-saquismo é atávico em políticos, uma lei deveria prevenir que homenagens gentílicas fossem outorgadas a recém-mortos: no mínimo 200 anos deveria separar um morto da vontade de emprestar seu nome a uma rua, a uma praça. Assim, Curitiba não passaria pelo mico de ter uma pequena rua chamada Rockfeller e outra maior chamada Jerônimo Durski.
“São precisos, muitas vezes, ai de nós, dois homens para fazer um perfeito amante (…).” (p. 671, Modesta Mignon)
– Ai de nós!
” – E o senhor diz que é poeta! – exclamou Dumay. – Mas então não sente nada do que escreve? …
” – Ora, se sentíssemos as misérias ou as alegria que cantamos, em poucos meses estaríamos gastos como botinas velhas… – disse o poeta, sorrindo.” (p. 722, Modesta Mignon)
– Autenticidade é coisa de influenciador amador.
” (…) – Ele me dá a impressão – disse ela – de uma joia preciosamente trabalhada, que a gente mostra muito mais do que usa, e que permanece guardada em algodão. (…) Os homens são como os livros, às vezes são apreciados demasiado tarde.” (p. 751, Modesta Mignon)
– Não há menor dúvida quanto a isso e por essa exata razão que toda comédia romântica tem um final que funciona, que ocorre quando a mocinha ou o mocinho descobrem o valor de quem amam a minutos de ser tarde demais.
” – Ora, senhor, os aleijões nascem todos centenários! (p. 772, Modesta Mignon)
– Um handicap forja a sabedoria desde cedo.
“Só a tolice é incurável…” (p. 772, Modesta Mignon)
– Pobre de nós: Brasília não tem solução.
Por trás do semblante
“Não é a fronte o que há de mais profético no homem?” (p. 128, Ao “Chat-qui-pelote”)
– A fisiognomia, hoje, é considerada uma pseudociência. Mas a gente deve ter o cuidado de não confundi-la com o que escritores fazem e nós sempre fizemos que é interpretar os sinais não verbais em uma conversa e a aparência das pessoas para inferir suas intenções e personalidade. Balzac é um mestre nesse tipo de interpretação. E vamos lembrar que por aqui também já tivemos outro mestre. Ou você acha que “olhos de cigana dissimulada” seria alguma coisa diferente de deduzir o interno pelo externo?
“Aquele que mais ama é o mais tiranizado e, o que é pior, é abandonado mais dia, menos dia.” (p. 184, Ao “Chat-qui-pelote”)
– Certamente é uma visão pessimista do amor, embora, como todos sabem, muito provável.
“Parecia, onde quer que estivesse, receber homenagens mais do que cumprimentos, e mesmo em casa de uma princesa, seu porte e seu ar converteriam em um trono imperial a poltrona na qual se sentasse.” (p. 211, O baile de Sceaux)
– Uma gente assim, que recebe mais homenagens que cumprimentos, deve ser bem sozinha.
“Ela lembrava essas criancinhas que parecem dizer à mãe: ‘Beija-me depressa, que eu quero ir brincar’.” (p. 212, O baile de Sceaux)
– Imagine que hoje todas as crianças parecem se comportar assim, sabendo que o afeto de suas mães é obrigação.
“Segundo dizia, as pessoas de uma razoável corpulência eram incapazes de sentimento, maus maridos e indignos de entrar numa sociedade civilizada. Conquanto fosse uma beleza apreciada no Oriente, a opulência de carnes parecia-lhe uma desgraça nas mulheres, mas para os homens era um crime.” (p. 214, O baile de Sceaux)
– A única maneira encontrada de aceitar os gordos em uma sociedade do direito foi tratando seu excesso de peso como doença.
“Minha mãe não é nem leviana, nem virginal; é exclusivamente digna, imponente; não pode sair disso senão para tornar-se leonina; quando ela fere, dificilmente cura; eu saberei ferir e curar.” (p. 296, Memórias de duas jovens esposas)
– Querer ser diferente da própria mãe é sempre é o caminho para a dignidade.
“É mudo e soberbo como um rei decaído.” (p. 326, Memórias de duas jovens esposas)
– No Brasil não temos reis dos quais nos lembramos, mas os presidentes que aqui caem fariam Balzac escrever que são falantes e soberbos.
“Henarez atreveu-se a olhar-me, querida, e seus olhos perturbaram-me, produzem-me uma sensação que não posso comparar a não ser com a de um profundo terror. Não se deve olhar esse homem, da mesma forma que não se deve olhar para um sapo; ele é feio e fascinante.” (p. 333, Memórias de duas jovens esposas)
– Nunca o fascínio da feiúra foi tão bem descrito.
“Oh! Os pés de uma criança são uma linguagem completa.” (p. 421, Memórias de duas jovens esposas)
– É completamente idiota o fascínio que sentimos ao mirar as mãos e os pés de nossos bebês. Até ter os nossos, vemos mãos e pés rechonchudos na publicidade, no colo de outras mães, nossas próprias fotos no colo de nossas mães. Mas quando são os nossos bebês, aqueles pãozinhos nos deixam completamente idiotizados.
“Oh! Ele tem talento e espírito, coração e orgulho; as mulheres se assustam sempre dessas grandezas completas.” (p. 469, Memórias de duas jovens esposas)
– E por isso as feias se casam com os homens bons, enquanto as bonitas precisam buscar aqueles que não as superem em nada.
“Não é a ilusão, para o pensamento, uma espécie de noite que povoamos de sonhos?” (p. 520, A bolsa)
– Sim, parece ser.
“Canalis não tem fé suficiente para ser Dom Quixote; tem, porém, demasiada elevação para não se colocar sempre ao lado conveniente das questões.” (p. 625, Modesta Mignon)
– A mediocridade sempre tem larga distribuição na população.
“Só é belo o que nos parece inútil” (p. 785, Modesta Mignon)
– Fiquei aqui pensamos em exceções… não encontrei.
“Para saber até que ponto vai a crueldade dessas encantadoras criaturas que as nossas paixões tanto enaltecem, é preciso ver as mulheres entre si.” (p. 850, Modesta Mignon)
– Não queira: nem quatro gerações de feministas foram capazes de eliminar a crueldade entre mulheres.
“O poeta esbarrava, então, contra uma cólera de grande dama. Semelhante cólera é a mais atroz das esfinges; o rosto é radioso, tudo o mais e bravio. Os próprios reis não sabem como fazer capitular a polidez elegante de frieza que uma amante oculta então sob uma armadura de aço. A deliciosa cabeça da mulher sorri, e ao mesmo tempo o aço morde, a mão é de aço, o braço, o corpo, tudo é de aço.” (p. 851, Modesta Mignon)
– Leoni com sua canção Garotos II chegou a captar a situação.
Costumes, modas e modos
“Seus cabelos grisalhos estavam tão perfeitamente alisados e penteados sobre o crânio amarelo que o faziam assemelhar-se a um campo lavrado.” (p. 132, Ao “Chat-qui-pelote”)
– Recentemente, aprendi que existe uma condição capilar rara, condicionada geneticamente, chamada de Pili annulati, na qual os fios ficam com faixas horizontais claras e escuras em função de alterações na estrutura da haste. Embora as fotos pesquisados no Google me mostrem cabelos que não têm uma aparência de campo lavrado tão dramática quanto a descrita por Balzac, penso na importância da literatura em, muito frequentemente, documentar condições de saúde que só virão a ser descritas no futuro.
“Guilhaume era um desses homens antigos e, se lhes tinha os ridículos, tinha-lhes também todas as qualidades.” (p. 136, Ao “Chat-qui-pelote”)
– Nós deveríamos sempre permitir que os velhos sejam ridículos sob pena de vivermos em um mundo que, apesar de jovem, risca não ter nenhuma qualidade.
“Não é que esse jovem desmiolado disse hoje que, se o dinheiro era redondo, era para rolar? Se para os pródigos ele é redondo, é chato para as pessoas econômicas, que o empilham e acumulam.” (p. 164, Ao “Chat-qui-pelote”)
– A avareza costuma ser criticada nos ricos, elogiada nos muito ricos, tolerada nos pobres e desconhecida nos muito pobres.
“Fica sabendo que só os pobres são generosos! Os ricos têm sempre excelentes razões para não dar vinte mil francos a um parente.” (p. 219, O baile de Sceaux)
– Como eu dizia.
” – Uma nobreza sem privilégio – dizia ele – é um cabo sem ferramenta.” (p. 207, O baile de Sceaux)
– Os privilégios que concedemos à classe política não aparenta ter lhes tornado mais útil…
” – Querida filha – disse-me ela -, o bom gosto consiste tanto no conhecimento das coisas que se devem calar como nas que se devem dizer.” (p. 301, Memórias de duas jovens esposas)
– Por isso as redes sociais espalharam tanto mau gosto, porque se tornou fácil dizer tudo o que vem à cabeça.
“Rica, jovem e bela, nada tenho a fazer senão amar, o amor pode tornar-se minha vida, minha única ocupação (…)” (p. 319, Memórias de duas jovens esposas)
– Ser rica assim.
“Para nós [mulheres], depravação não é o cálculo nos sentimentos?” (p. 363, Memórias de duas jovens esposas)
– Parece que, aqui, não houve mudança de então até agora. Uma mulher cujo sentimento esteja sujeito a cálculos sempre será chamada de vadia.
“Ah! Renata, o que é admirável é que o prazer não tem necessidade de religião, de pompas, nem de palavras altissonantes, é tudo por si mesmo; ao passo que, para justificar as atrozes combinações de nossa escravidão e de nossa vassalagem, os homens acumularem teorias e máximas.” (p. 406)
– Fazer o quê? A virtude requer disciplina, ao passo que a graça nos é dada.
“Dar vida é nada; mas amamentar é dar vida a todo momento. Oh! Luísa, não há carícia de amante que valha as essas pequeninas mãos rosadas, que afagam tão suavemente e procuram agarrar-se á vida. Que olhares passeia um filho, alternativamente, de nosso seio aos nossos olhos! Que sonhos temos ao vê-lo suspenso pelos lábios ao seu tesouro!” (p. 420, Memórias de duas jovens esposas)
– Talvez o puritanismo de nossa sociedade vitoriana 2.0 não permita mais apreciar esse parágrafo.
“Pensa nisto: o desprezo na mulher é a primeira modalidade do ódio.” (p. 436, Memórias de duas jovens esposas)
– Dias desses assisti a esta série recente, Ninguém quer (Netflix, 2024), que conta o relacionamento entre um rabino e uma influencer. O namoro quase vai por água abaixo quando ela sente vergonha da roupa que ele usava para visitar os pais. A fase nojo, que Balzac chamou de desprezo.
“Pediste que te dissesse como ele é; mas, minha Renata, é impossível fazer o retrato de um homem a quem se ama, não se pode alcançar a verdade. Além disso, confessemos sem hipocrisia um singular e triste resultado de nossos costumes: nada há tão diferente quanto o homem da sociedade e o homem do amor (…).” (p. 487, Memórias de duas jovens esposas)
– Aqui é preciso lembrar que o amor, naquela sociedade, era encontrado sobretudo fora do casamento ou, se no casamento, apenas depois de uma viuvez.
” (…) o Amor é um roubo feito pelo estado social ao estado natural; ele é tão passageiro na natureza que os recursos da sociedade não lhe podem mudar as condições primitivas.” (p. 493, Memórias de duas jovens esposas)
– Fast foward para 1930: Freud publica Mal estar na cultura.
“Não é um mérito bastante raro o saber julgar a própria época?” (p. 536, A bolsa)
– Não apenas é como a humanidade se dedica pelo menos desde a antiguidade greco-romana ao assunto, nem sempre com o mesmo êxito, contudo.
“Esse aprendiz de papa-ouro (qualificativo inventado por Butscha) pertencia a essa espécie de substância que a química denomina absorventes.” (p. 575, Modesta Mignon)
– Gentem, que hilário! Agora, quando virmos um sujeitinho ambicioso mas sem grandeza, vamos chamá-lo de papa-ouro da categoria química dos absorventes.
“De bom grado, Canalis quisera escrever uma grande obra sobre política, mas temia comprometer-se com a imprensa francesa, cujas exigências são cruéis para com aqueles que contraem o hábito de empregar quatro alexandrinos para exprimir uma ideia.” (p. 628, Modesta Mignon)
– Mudam-se as formas de exprimir, conserva-se a crueldade.
“As dissipações do reinado de Luís XV, as orgias desse período egoísta e funesto, produziram a geração estiolada na qual somente as maneiras sobreviveram às grandes qualidades desaparecidas. As formas, eis a única herança que os nobres conservam.” (p. 749, Modesta Mignon)
– É interessante observar a confusão de sentimentos que deve ter sobrevindo à queda da Bastilha, com aquela esperança de que outro ramo da dinastia dos Bourbon pudesse restaurar a grandeza da França ao mesmo tempo em que se vislumbrava os benefícios de uma república. Por isso que, pra muitos, deve ter parecido natural que dois Napoleões assumissem-se imperadores mesmo depois de terem decapitado um rei e uma rainha.
“O parisiense admira-se de que tudo, por toda a parte, não seja como em Paris, e o francês como em França.” (p. 761, Modesta Mignon)
– Mais ou menos como a ponte aérea Rio-São Paulo se admira de que haja outras rotas comerciais.
” (…) para passar rapidamente o dia, mandaram encilhar os cavalos, que haviam sido alugados para duas finalidades, e se aventuraram pela terra, que certamente lhes era tão desconhecida como a China; porque em França, para um francês, o que há de mais estrangeiro é a França.” (p. 773, Modesta Mignon)
– Qual é o cidadão que conhece seu próprio país?
“Os grandes fazem sempre mal em gracejar com os seus inferiores. O gracejo é um jogo, o jogo supõe a igualdade (…)” (p. 775, Modesta Mignon)
– Você não precisa conhecer essa regra de etiqueta porque, se cometer um gracejo inapropriado, ele se revela instantaneamente. Gafes são autoevidentes.
“Nada rende tanto no comércio social como a esmola da atenção. Ter ouvidos para ouvir não é somente um preceito evangélico, é também uma excelente especulação; se o observardes, tudo vos desculparão, até mesmo vícios.” (p. 790, Modesta Mignon)
– Em uma firma, repare: sempre há aquele funcionário incompetente cuja permanência no cargo só se justifica pelo fato de ele ser um bom ouvinte de fofocas e lamentações contra o chefe.
“Como Henrique IV deve ter sorrido: conta-se que Henrique IV (1553-1610), no intuito de caracterizar diante de um embaixador seus três principais ministros, chamou-os um após outro mostrando-lhes uma trave podre que descobrira no teto de seus aposentos. O primeiro afirmou que a trave não estava podre; o segundo admitia que o estava, mas pretendeu que serviria tal qual durante muito tempo ainda; o terceiro, sem discutir, chamou imediatamente um oficial e a mandou consertar.” (p. 797, Modesta Mignon – nota de rodapé escrita por Paulo Rónai)
– Como Henrique IV, faz bem ter em volta de si esses três tipos de ministros.
Escrito por Mayra Corrêa e Castro (C) 2024
BALZAC, Honoré de. A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada. Volume 1. 3. ed. Notas: Paulo Rónai. Tradução: Vidal de Oliveira. São Paulo: Globo, 2012. 872 p.