Casa Máy > As Melhores Partes - Posts > história > A Casa da Sabedoria – Jonathan Lyons
Este é um livro muito bacana! Leia e você terá uma visão bastante diferente sobre o impacto da cultura árabe no ocidente e ficará bestificado de ver o quanto a Europa esteve atrasada por conta de dogmas que o cristianismo das Cruzadas encucava na cabeça do povo. Por vezes, a leitura se torna um tiquinho cansativa: a profusão de nomes árabes não ajuda, a leitura emperra num ou noutro deles. Então engrena de novo e vai revelando os malabarismos que europeus esclarecidos fizeram para aprender com os árabes.
Para mim, da cultura árabe, o exemplo mais citado sempre foi Avicena, nome necessário num curso de aromaterapia quando precisamos contar quem descobriu o processo de destilação das rosas e o quanto esta descoberta fez pelo desenvolvimento da perfumaria e do uso medicinal de plantas. Mas Avicena é apenas algumas páginas das quase 300 que Jonathan Lyons escreveu. Jonathan é jornalista e escritor, foi correspondente da agência Reuters por anos e atualmente é filiado à Universidade Monash, na Austrália, e reside nos Estados Unidos. Estuda as relações entre Oriente e Ocidente e, depois do ataque do 11 de Setembro, tem se debruçado sobre o terrorismo.
O livro não puxa sardinha nem pra islâmicos, nem pra cristãos; nem pra Oriente, nem pra Ocidente. Nós é que acabamos pendendo pra um lado ou outro conforme resolvemos a ignorância que tínhamos das interações que estas duas culturas iniciaram num período muito distante de hoje. O livro começa contando a história de Adelardo de Bath, um jovem europeu que resolve viajar ao mundo islâmico (c. 1114) para aprender à luz da sabedoria árabe. É a jornada de Adelardo e de outros como ele que vamos aprendendo. Vá correndo ler o livro. Tenho certeza que irá gostar. Abaixo vão citações que selecionei para comentários.
Contribuições árabes
“Essa grande luta entre fé e razão estava prestes a abalar as estruturas de uma desprevenida Europa.” (p. 18)
– Quando Adelardo decide viajar ao Islã, alguma notícia das maravilhas que a civilização árabe tinha descoberto sobre o funcionamento do mundo já chegavam cá e lá na Europa, graças às Cruzadas. Para os cristãos daquela época, tudo que os árabes diziam se chocava diretamente com o que a Bíblia dizia. Mas, como lembra Jonathan, as questões que começavam a afligir os ocidentais já tinham sido discutidas pelos árabes durante séculos enquanto eles tentava ajustar sua fé monoteísta ao mundo que iam desvendando.
“A ciência e a filosofia árabes ajudaram a resgatar da ignorância o mundo cristão e possibilitaram a própria ideia de Ocidente.” (p. 18)
– Caramba, né? É uma ideia ousada e que o autor defende em todos o livro: que sem os árabes, o Ocidente não existiria.
“Mais importante ainda do que qualquer obra individual foi a contribuição geral dos árabes que constitui o próprio cerne do Ocidente contemporâneo: a percepção de que a ciência pode conceder ao homem poder sobre a natureza.” (p. 19)
– Viu a teoria de Jonathan? A civilização árabe é que permitiu que o cientificismo utilitário – marca registrada do Ocidente – fosse descoberto e perseguido. A pergunta é por que não achamos que tenha sido desta forma? A resposta vem na página seguinte:
“Ávidos por reivindicar uma descendência direta de pessoas como Aristóteles, Pitágoras e Arquimedes, os pensadores ocidentais deliberadamente marginalizaram o papel do conhecimento árabe.” (p. 20)
– Olha, só pra te situar: Jonathan Lyons não é qualquer escritorzinho barato. O cara é um dos mais respeitados estudiosos das relações Ocidente e Oriente. É ele quem está falando isso.
“Ao longo de 150 anos, os árabes traduziram todos os livros gregos disponíveis de ciência e filosofia.” (p. 90)
– É surpreendente, mas o primeiro contato dos ocidentais com o conhecimento grego não foi em grego, mas em árabe. Só bem depois é que começaram a traduzir o grego para o latim.
“Talvez nem todas as consequências da grande expansão islâmica tenham sido tão grandiosas quanto a confluência de algumas das grandes tradições intelectuais do mundo, mas se revelaram, no mínimo, igualmente vitais.” (p. 81)
– O que Jonathan quer dizer é que os árabes visitaram seus outros vizinhos, não apenas o nosso quintal. Da China eles trouxeram e popularizam a tecnologia do papel, por exemplo, e da Índia eles trouxeram os algarismos, inclusive o zero, e desenvolveram a álgebra. Pouca coisa não é.
“O explorador português Vasco da Gama, que já havia feito sua famosa ultrapassagem do cabo da Boa Esperança, extremo sul do continente africano, em 1497, foi depois guiado para a Índia por um mapa muçulmano e, talvez, até por um piloto muçulmano.” (p. 128)
– Jonathan falou de Vasco da Gama, agora vem Cristóvão Colombo:
“Cristóvão Colombo também se beneficiou do trabalho dos árabes, em particular de uma tradução latina de meados do século XII das Tabelas Sabeias, que resumiam as técnicas mais recentes de geografia matemática árabe.” (p. 129)
As Cruzadas
“Embora viessem a fracassar no final, as Cruzadas pagaram dividendos significativos ao colocar o mundo latino face a face com as proezas científicas e tecnológicas do Oriente árabe.” (p. 29)
– Quem tem minha idade, 38 anos, deve se lembrar de uma cena emblemática do atraso europeu em relação aos árabes no filme Robin Hood, O Príncipe dos Ladrões (1991), com Kevin Costner: Kevin é Robin Hood e seu escudeiro é Morgan Freeman, um árabe. Diante de um possível ataque do Xerife Nottingham, Morgan Freeman pede para que Kevin Costner observe por um binóculo a aproximação do inimigo e Kevin não sabe como usar o instrumento. Em outra cena, Morgan propõe salvar a vida de um bebê fazendo uma cesárea na mãe, o que todos à volta julgam impossível. Bom filme, teve várias indicações ao Oscar.
“Os cruzados, abandonando a teologia do amor de Cristo pela teologia da guerra do papa, massacraram as populações urbanas locais, compostas principalmente por muçulmanos e judeus, em seu fervor por ‘reclamar’ Jerusalém para a única fé verdadeira.” (p. 41)
– Eu não sabia que as Cruzadas também perseguiram os judeus. Acho muito curioso que a única coisa que tenha ficado no imaginário ocidental sobre as Cruzadas foram os Cavaleiros Templários e as história acerca do Rei Arthur. Apagamos toda a crueldade da coisa e ficamos só com o lado místico. Então vou lhe contar uma coisa: nem o lado místico se salva. Lendo A História Secreta de Paris, de Andrew Hussey, fiquei sabendo que o bairro Marais, em Paris, foi o local de refúgio daquela ordem de cruzados. Agora, advinhe: os templários eram execrados pelos parisienses porque eram ladrões e bêbados. Depois que a ordem se desfez, o Marais foi ocupado por… judeus. Infelizmente, não se tornou uma ironia. Quando Hitler ocupou a França, toda a população do Marais foi dizimada.
“Mas a Primeira Cruzada abriu um terceiro caminho entre o Oriente e o Ocidente, no qual a força militar bruta daria lentamente lugar a uma rede de laços comerciais, culturais e intelectuais entre dois mundos rivais, mas em última análise inseparáveis.” (p. 47)
– Todo mundo mais ou menos já ouviu a historinha que o ocidente aprendeu a usar o numeral zero porque tinha que assinar contratos comerciais com os árabes. Só pelo zero, já temos uma dívida homérica com os árabes. Aliás, Jonathan nos traz algumas palavras que aprendemos com os árabes: tarifa, arsenal, aduana, alfândega.
Religião, astrologia e poesia
“A integração dessas duas forças, astrologia e ciência clássica, revelou-se um potente incentivo para o primeiro desenvolvimento intelectual árabe.” (p. 94)
– Considero que uma das melhores partes do livro é quando Jonathan nos explica como a mistura de astrologia e ciência – tão natural a árabes – prejudicou a correta compreensão dos textos árabes por parte dos ocidentais. Basicamente, pra encurtar a história, as tábuas planetárias usadas pelos árabes não funcionavam para o céu ocidental e quando os ocidentais tentavam transpor o conhecimento para cá, nada dava certo. Acho muito interessante saber que uma das razões para os árabes terem sido tão bons em astronomia é que tiveram que rapidamente aprender a se orientar para poder rezar na direção correta de seus lugares sagrados. Expandindo suas conquistas por territórios distantes, eles tinham que saber olhar para o céu e rapidamente identificar pra que lado estava Meca, por exemplo. Não é muito curioso? Isso fez com que eles inclusive precisassem medir a circunferência da Terra. Puxa, falei circunferência? Sim, é verdade: enquanto o Ocidente ainda achava que a Terra era plana, eles já sabiam que não era.
“As obras cientificas eram escritas tradicionalmente em verso, a fim de facilitar a memorização.” (p. 98)
– Assim como na cultura hindu, o conhecimento árabe era transmitido em grande parte oralmente, devido, sobretudo, à escassez e ao alto custo do papel. Assim, escrever em versos facilitava a memorização das lições. Agora imagine um ocidental tentando traduzir estes versos para recuperar uma lição totalmente estranha ao que o cristianismo pregava. Tinha que dar caca. Por isso, aqueles espíritos esclarecidos que mencionei antes realmente são dignos de louvor, porque não deve ter sido fácil estudar com os árabes.
“Aristóteles respondeu que razão e revelação – ou seja, ciência e religião – eram ambas boas e de interesse público, resposta que o califa tomou como uma confirmação de que a cultura científica era um dever religioso.” (p. 106)
– Uma das razões para o Islã ter desenvolvido um conhecimento sofisticado sobre astronomia, medicina, física e poesia é que a religião mulçumana vê como um dever o desenvolvimento do intelecto, do corpo e o cuidado para com o próximo, numa época remota em que o cristianismo achava que doentes, miseráveis e loucos não deviam ser ajudados porque estavam tendo a oportunidade de, pelo sofrimento, espiar seus pecados, e achava que as pessoas não deviam cuidar de seu asseio porque era sinal de vaidade, um pecado capital. É mole?
“O homem deveria se refugiar em Deus, declara ele [Adelardo de Bath], somente quando seu intelcto se revelasse incapaz de compreender o mundo ao seu redor. (…) ‘Eu não depreciarei nada de Deus, pois tudo o que é, é a partir de Deus… Devemos ouvir os limites extremos do conhecimento humano e somente quando isso fracassar totalmente é que deveremos atribuir as coisas a Deus.’” (p. 160)
– Jonathan conta que Adelardo voltou de sua imersão no mundo árabe transformado em outro homem. O que encontrou na Europa Ocidental? A mesma intolerância católica de sempre que dizia que todo o conhecimento acerca do mundo estava na Bíblia. Você sabe, Galileu, que confrontou ideias católicas sobre como seria a Terra, viveria apenas cinco séculos depois de Adelardo. É, portanto, admirável que Adelardo tenha feito este tipo de declaração em seu tempo.
Descontribuições ocidentais
“A política da alquimia também desempenhou um papel importante na ascensão da ciência ocidental, pois os requisitos de Estados às vezes ofereciam aos seus primeiros praticantes uma proteção inestimável contra a condenação pela religião.” (p. 143)
– Quando os primeiros europeus regressaram do mundo árabe munidos do conhecimento alquímico, nós sabemos, começaram a ser perseguidos pela Igreja Católica. Jonathan explica que os reis seculares enxergavam na alquimia uma maneira de enriquecer – já que se prometia a descoberta de como fazer ouro. Entretanto, o máximo que os alquimistas conseguiam era diluir o ouro das moedas, fabricando-as com impurezas. É como se os reais fizessem uma emissão sem lastro de papel moeda. Mas, de qualquer forma, a Igreja ficava enfurecida, porque via reis subitamente mais ricos que ela própria. A solução católica foi chamar tudo de magia negra. Bacaninhas, hein?
“Essa tendência dos eruditos da Renascença e seus sucessores, do Iluminismo até os tempos modernos, a desprezar as contribuições dos muçulmanos e atribuir uma linhagem grega clássica ao mundo das ideias levou-os a enfatizar a influência dos escritos astrológicos do astrônomo grego Ptolomeu. Porém, a obra pioneira de Adelardo de Bath e seus sucessores imediatos conferiu a Albumazar séculos de influência como uma das principais autoridades na cristandade medieval em ciência e filosofia. Seus ensinamentos ajudaram a fixar a aceitação quase universal de uma visão do cosmo como dominado por leis compreensíveis.” (p. 177)
– Albumazar foi um erudito persa do século IX, chamado Abu Mashar al-Balkhi, uma autoridade à época em astrologia.
revisto por Mayra Corrêa e Castro (C) 2012
LYONS, Jonathan. A Casa da Sabedoria: como a valorização do conhecimento pelos árabes transformou a civilização ocidental. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2011.