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A arte e a maneira de abordar seu chefe para pedir um aumento – Georges Perec

Postado às 15:00 do dia 27/07/12

Aviso: leia apenas se não estiver procurando um aumento. O texto, que foi publicado pela primeira vez em 1968 na França, é uma obra de literatura-combinatória, estilo filiado ao gênero OuLiPo, que surgiu em 1960, na França, entre escritores e matemáticos que se reuniram para produzir literatura com certas regras de escrita. Acrônimo de Ouvroir de Littérature Potentielle (Oficina de Literatura Potencial), o OuLiPo agregou escritores como Raymond Queneau, Italo Calvino, Jacques Roubaud e o próprio Georges Perec (1936-1982) em torno de alguns experimentos, como escrever sem usar determinada vogal, escrever uma frase de modo que cada palavra comece com a letra subsequente do alfabeto, narrar de acordo com a disposição das cartas do tarô ou, como neste A Arte e a Maneira… narrar o organagroma de uma empresa.

Através do posfácio do livro, sabemos que A Arte e a Maneira… foi escrito como resposta ao organograma desenhado por Jacques Perriault para esquematizar os passos que um sujeito deve tomar para chegar até seu chefe imediato e pedir aumento de salário. Tudo começa com uma decisão: ir à sala do chefe para lhe pedir aumento, e duas possibilidades decorrentes: ou ele estará na sala, ou não estará. A partir de uma delas, o organograma vai para uma direção ou para outra com questões como: o chefe levanta a cabeça quando você bate na porta? sorri para você? parece bem de saúde? atende na hora ou pede para que você volte mais tarde? oferece-lhe uma cadeira? interessa-se por seu assunto?

Quem já trabalhou com MS Project ou Visio, sabe que questões desses tipo não cabem dentro de um organograma – porque eles são estanques, na direção de cima para baixo –, porém, mais propriamente, a fluxogramas de processos, com aquelas formas chamadas processo, decisão e documento, numa estrutura que se autoalimenta. Para dar conta de narrar esse fluxograma, um amigo de Perec, Raymond Queneau escolheu elaborar uma narrativa em que o leitor decide para onde vai a história (Un conte à votre façon, sem tradução no Brasil) e Perec escolheu uma narrativa em que todas as possibilidades são contempladas, produzindo um texto estilisticamente poderoso, de engrenagem hilária e sem nem um único sinal de pontuação. Claro, um fluxograma não termina, apenas começa.

É muito difícil extrair citações deste livro, mas tentarei. As melhores partes são quando o narrador fica irritado em explicar de novo ao leitor quais são as possibilidades já aventadas no projeto de abordar o chefe. Como se fosse um paciente escritpor de manual de auto-ajuda, o narrador por vezes explode diante da situação ridícula que é um funcionário subalterno pedir aumento para um chefe que quer, ele próprio, um aumento também. Franceses têm, todos, uma relação sindicalirizada com o trabalho e, portanto, pedir aumento não é algo que se ponha de sopetão, mas que se planeja. Vá ler o romance e ria do ridículo que é ganhar um salário no fim do mês.

Ah, sim, uma última nota: parabenizo o tradutor Bernardo Carvalho por alguns achados vocabulares (“esique”, “maomeno”, “máquina da porra” e “ovo virado”, que fiquei muito curiosa de saber como é no francês) e por conseguir manter a fluidez no texto.

 

 

A possibilidade do chefe passar mal após o almoço

“(…) ok você já sabe que ele não é leviano mas você está bastante acostumado aos imprevistos para não falar das trapças da existência para saber que e em especial na empresa que o remunera às vezes não é preciso muito para alterar o humor de um chefe imediato não obstante ser ele o melhor homem do mundo e que tal proposta feita às nove e meia corre o grande risco de não valer mais nada às catorze e trinta nem que seja apenas por se intecalar nesse intervalo o instante sempre crucial do almoço instituição cujo desenrolar mais ou menos feliz tem sempre consequências mais ou menos nefastas sobre a disposição do seu interlocutor (…) (p. 16-17)

– Entre as muitas possibilidades que podem ocorrer para você não falar com o chefe é ele passar mal após o almoço. O que acho hilário nessa passagem é a exacerbação dessa possibilidade em “instante sempre crucial do almoço”. É tão difícil conseguir falar com o chefe que mesmo acontecimentos banais viram um drama absurdo.

 

 

A possibilidade do mal-estar do chefe ser por conta da ingestão de uma espinha de peixe ou de ovos podres

“ (…) e aos sábados você não trabalha mas esse é um problema delicado que nós nos propomos a analisar mais de perto daqui a pouco vamos supor portanto para simplificar pois sempre é bom simplificar que ainda que a lanchonete tenha servido peixe na refeição do meio-dia o seu chefe imediato não engoliu nenhuma espinha e por conseguinte você não vai mudar nada nos seus planos para simplificar ainda mais podemos supor que a lanchonete não serviu peixe mesmo sendo sexta-feira o que nos leva a supor que serviram ovos e nesse caso das duas uma ou esses ovos estavam podres ou esses ovos não estavam podres suponhamos que os ovos estivessem podres você se vê pedindo aumento a um chefe imediato à beira de uma intoxicação alimentar talvez não claro que não então espere o dia seguinte (…) (p. 18)

– Existem alguns bordões, se podemos chamar assim, na narrativa, que são os momentos que chamamos, no fluxograma, de documento. Em deles é “vamos supor portanto para simplificar pois sempre é bom simplificar”, que ancora a narrativa, dando um basta às inúmeras possibilidades do que pode acontecer.

 

 

A possibilidade a ser evitada: falar com o chefe num dia em que sirvam peixe ou ovos no almoço

“ (…) suponhamos então que não é sexta-feira por várias razões isso é preferível a lanchonete tem menos chances de servir peixe ou ovos e seu chefe imediato corre menos risco de engolir uma espinha ou de se intoxicar com ovos podres aliás se o seu chefe imediato o convoca para o dia seguinte esse dia seguinte não pode ser sábado o que lhe facilita a empreitada entretanto não cometa o erro de crer que só porque não é sexta-feira não há mais o problema do almoço na verdade podemos muito bem estar na quaresma (…) (p. 19)

– Imagine um filme de Woody Allen onde o ator principal, seu alter-ego, fica exasperado com a possibilidade de vir a comer peixe, com espinhas, numa sexta; então ele evita comer fora às sextas quando lembra que pode ser a quaresma e aí é que servirão peixe mesmo não sendo sexta-feira. É isso. Uma narrativa do além!

 

 

Da determinação do melhor dia para abordar o chefe

(…) você se vê assegurado da boa receptividade do seu chefe imediato a menos é claro que seja segunda-feira se for segunda-feira espere até terça só muito burro mesmo para ir pedir um aumento ao chefe imediato numa segunda-feira (…) (p. 21)

– O ridículo é que a narrativa pretende-se uma manual infalível para maximizar as oportunidades de pegar o chefe de bom humor. Para ser infalível, precisa explicar direitinho até as coisas mais óbvias, como não abordar o chefe na segunda-feira. Mas vira e mexe o narrador se enche e xinga o leitor do manual. Todas essas passagens em que ele chuta o paui da barraca são engraçadísimas, porque a expectativa é que aguém que produza um manual de ajuda sempre manterá o tom mais cordial e paciente do mundo.

 

 

Do mau humor do chefe ser por causa da possibilidade das filhas dele estarem com sarampo

“ (…) você lhe pergunta portanto se uma de suas filhas está com sarampo ele responde que não se duas de suas filhas estão com sarampo ele responde que não num certo sentido é uma boa resposta mas que também pode dissimular uma verdade pior a saber que três das filhas dele estejam com sarampo faça a pergunta francamente se o seu chefe imediato responder que sim três de suas filhas estão com sarampo saia precipitadamente nem será necessário arrumar um pretexto qualquer (…) (p. 32)

– Uma das joias deste texto de Perec é a interpretação do sentido literal das situações que se apresentam.

 

 

Do problema de falar em pé sobre aumento de salário

“ (…) ou bem você faz como se ao entrar ele tivesse lhe indicado uma cadeira e senta ou bem mantendo-se em pé você faz como se estivese sentado e começa a falar do problema que o aflige (…) (p. 34-35)

– Não sei se no Brasil temos este problema de ficar incomodado quando o chefe não nos oferece a cadeira. Mas nesse fluxograma, o chefe oferecê-la ou não implica em n possibilidades.

 

 

Quando o narrador desbunda

“ (…) você dá um giro pelas diversas seções cujo conjunto constitui a totalidade ou parte da vasta organização que utiliza a coladeira automática portanto você vai ver com seus próprios olhos como se comporta essa máquina da porra e encontra seu chefe imediato que não apenas não o parabeniza mas ao contrário o repreende (…) (p. 52)

– Em alguns momentos, o narrador toma partido do leitor. Cômico!

 

 

A alternativa de mandar o projeto às favas

“ (…) finja que está trabalhando por exemplo ou mesmo e por que não trabalhar realmente durante algumas semanas você verá às vezes é interessante aliás não é ruim que por um tempo você perca o hábito de ir a cada cinco minutos à sala do sr x (…) (p. 61)

– A ideia de abordar o chefe consome cada vez mais tempo do empregado e fica patente que ele mata tempo no escritório, motivo mais do suficiente para que ele não receba aumento nenhum.

 

 

Das possibilidades matemáticas do valor do aumento

“ (…) você explica que ganha 691 francos por mês e que gostaria hã de ganhar talvez não 6910 nem 6190 nem mesmo 1960 nem mesmo 1690 mas hã 961 ou 900 enfim bom 850 hã 800 vai 791 não falemos mais nisso digamos 700 bem diz o seu chefe imediato (…) (p. 66)

– Imagine o empregado repassando mentalmente todos esses números conforme observa a expressão do chefe. Coitado, o chefe nem bem abre a boca e ele já conclui que a única quantidade cabível de aumento são parcos 9 francos. Putz!

 

revisto por Mayra Corrêa e Castro ® 2012

 

PEREC, Georges. A arte e a maneira de abordar seu chefe para pedir um aumento. São Paulo: Companhia das Letras. 2010.

 

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