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Em defesa de uma aromaterapia livre

Postado às 09:20 do dia 17/06/19

Primeiro preciso esclarecer que a Portaria nº 702 de 21 de março de 2018 do Ministério da Saúde (MS), que incluiu a aromaterapia na PNPICS, não regulamentou a aromaterapia. Nem mesmo a autorizou a todos os profissionais de saúde que já atuam no SUS, a exemplo de médicos, pois você bem deve se lembrar das notas publicadas pelo CFM e CRMs dizendo que o Código de Ética do conselho proíbe que médicos usem terapias sem comprovação científica.

Dito isso, precisamos entender que a aromaterapia continua livrinha da silva como sempre foi: não é reconhecida, isto é, não tem um número na CBO – Classificação Brasileira de Ocupações, tampouco é regulamentada. Ser uma profissão livre é o equivalente a ser uma profissão que não existe do ponto de vista da lei. Algo que é bastante estranho, diga-se de passagem, pois você ganha dinheiro através do exercício dela, eventualmente declara os rendimentos que obteve com ela no seu Imposto de Renda, e também usa esse dinheiro pra consumo, pagando através dele todo tipo de imposto incidente, como IPI, ICMS e ISS. (Donde se deduz que, pro Estado, não existe dinheiro ruim: ele pode vir até de atividades ilegais – pagando impostos, ok; todo dinheiro é dinheiro bom pra pagar impostos.)

O debate que se coloca é se devemos regulamentar a aromaterapia.

Antes da gente iniciar este papo, talvez seja produtivo, logo de cara, pôr alguns pingos nos is e falar às claras o que significa regulamentar uma profissão: regulamentar significa controlar.

Ninguém regulamenta uma profissão se não estiver a fim de a controlar. Ponto.

É bem bobo acreditar que as profissões são regulamentadas querendo-se proteger os consumidores, os cidadãos, a sociedade. Toda proteção de que as pessoas precisam estão em dois pilares de sociedades democráticas: o direito à propriedade privada e o sistema de segurança e justiça que garante este direito. Acesso à informação também é outro pilar importante, e guarde ele por enquanto na sua memória.

Toda vez que sua santa propriedade privada for violada – e isso inclui a mais valiosa delas, seu corpo, sua integridade física e mental -, você tem o direito de exigir reparo. Em sociedades ideais, o reparo vem por uma ação do sistema de segurança e justiça. Em sociedades meia-boca também ocorre assim. Tem percalços no meio do caminho, claro, como atraso do reparo, desproporcionalidade entre o dano e o reparo, custo alto da obtenção do reparo e, inclusive, não-acesso aos meios de solicitar o reparo. Mas as sociedades estão razoavelmente organizadas pra garantir o que é seu e pra reparar violações.

Entre as profissões que efetivamente podem gerar danos à mais importante de nossas “propriedades”, a vida que temos, estão aquelas que lidam com nossa saúde e nossa alimentação. Por isso, pra que se evite o potencial de dano que um médico pode causar, entende-se que se deve controlar sua atividade; pra que se evite o potencial de dano de um medicamento indicado erroneamente, entende-se que se deve controlar a atividade do farmacêutico; pra que se evite o potencial de dano que uma sessão de psicoterapia pode causar, entende-se que se deve controlar quem pode oferecê-la, psicólogos. Controlam-se médicos, farmacêuticos, psicólogos porque se entendeu que é mais vantajoso controlar o potencial de dano que podem causar que reparar o dano causado no futuro.

Em outras áreas, a estratégia de controlar o potencial de dano pode não ser exercida diretamente no profissional, mas sobre a atividade em si: pra evitar o potencial de dano que um pastel de feira pode causar, entende-se que se deve controlar a barraquinha da feira, exigindo coisas como manipulação conforme boas práticas e sua inspeção por parte da Vigilância Sanitária em vez de regulamentar a profissão pasteleiro

Se no campo da saúde e da alimentação a necessidade de controle preventivo (contra o potencial de dano) é supostamente evidente, ela o é bem menos em áreas onde nosso corpo não esteja diretamente envolvido. Jornalismo, por exemplo. O controle que a regulamentação do jornalismo trouxe anos atrás visava proteger exatamente o quê? Com um recurso medíocre de retórica, posso dizer que visou proteger o “corpo social”, o “corpo da coletividade” contra abusos de maus jornalistas.

Outro exemplo que exige esforço pra entender a necessidade de controle é na área de sommeliers. Contra o que exatamente sommeliers regulamentados estariam nos protegendo? Contra ressacas causadas por vinhos ruins? Até onde eu sei, por experiência própria inclusive, excelentes vinhos também dão ressaca. Infelizmente, depende da quantidade de taças que você decide tomar.

A regulamentação de sommeliers, do ponto de vista do consumidor, é inócua. Em bom português, ela não fede nem cheira. Então não é um engano deduzirmos que regulamentar profissões atende a outros interesses que não o de proteger contra potencial de dano. A questão é se quaisquer desses interesses nos trazem vantagens enquanto sociedade:

  • regulamentar o jornalismo não impediu, no decorrer de 50 anos, que o consumo de notícias “degenerasse” pra blogs, vlogs, mídias sociais; não impediu que o jornalismo esteja hoje enfrentando sua mais grave crise de credibilidade;
  • regulamentar a medicina, farmácia, psicologia, por exemplo, não impediu que o mercado continue produzindo péssimos profissionais, que continue havendo erro médico, e certamente não garantiu acesso à população a bons atendimentos médicos. Tudo que a regulamentação dessas profissões garantiu foi que surgissem inúmeras terapias complementares justamente pra atender o desejo das pessoas de se cuidarem e, em última instância, cuidarem-se exercendo sua liberdade de escolher como, onde e quando. E também gerou uma leva de médicos, farmacêuticos e psicólogos insatisfeitos com a impossibilidade de agirem fora da pré-formatação de suas profissões lançando mão do que fosse melhor em prol de seus pacientes e da maneira como seus pacientes precisassem.

Um argumento que surge sobre a necessidade de se regulamentar profissões de saúde é que com a regulamentação é possível denunciar maus profissionais, tirando-lhes o direito de exercer a profissão. Esta é uma ideia equivocada. De bate pronto, temos que entender que se algum profissional cometer algo contra você, ele responderá por um crime, e que quem julgará este crime não será o Conselho daquele profissional regulamentado, mas a Justiça.

Na verdade, dependendo da influência daquele profissional em seu Conselho, o Conselho pode até atuar na defesa dele, colocando os advogados do Conselho à disposição do caso. Isso acarreta a estranha situação de que, se primeiro a regulamentação era uma forma de proteger as pessoas contra maus profissionais, agora temos a situação exatamente oposta, que é a da regulamentação protegendo os profissionais que sustentam esses Conselhos.

Outra questão é que, na possibilidade do profissional perder seu registro no Conselho, isso não impede de forma alguma que ele continue dispondo do seu conhecimento de outras formas, como virando palestrante, influenciador digital, nem impede que ele mude de cidade e comece a atender sob qualquer rótulo que invente, contando que não diga estar exercendo medicina, ou farmácia, ou psicologia, conforme for o caso.

Finalmente, não está provado que as entidades legais, como Conselhos, sejam as mais adequadas pra lidar com problemas que nos atingem. Um exemplo banal, porém certeiro, é o site Reclame Aqui: mais rápido, mais acessível e muitas vezes mais eficaz que o Procon. Mas se este exemplo não o convencer, basta pensar que, se for pra punir um mau profissional, atacar sua reputação muitas vezes basta, algo que as colunas sociais de jornais impressos faziam maravilhosamente bem no passado, e que hoje é feito através das mídias sociais.

***

Agora a gente teria que avaliar se a regulamentação de profissões visa trazer qualidade à formação de profissionais, padronizando esta formação junto ao MEC – Ministério da Educação e Cultura. Traz qualidade? Esta é uma pergunta que gosto de responder porque ela é muito fácil.

Qual a grande vantagem de você ter uma formação MEC se não precisasse daquele diploma pra exercer determinada profissão? Sempre é preciso um pouco do coragem pra encararmos os fatos: nenhuma vantagem. Uma formação MEC não garante absolutamente nada em termos de qualidade de formação que o próprio mercado não pudesse, sozinho, oferecer. MEC não é garantia de qualidade de ensino. Se fosse, não haveria concorrência pra se entrar nas melhores faculdades, já que todas são MEC. MEC não é garantia de boa formação, ou não teríamos tantos maus advogados, maus administradores de empresa, maus contadores, maus engenheiros, maus pedagogos etc. Uma coisa que deveria ser evidente por si só é que qualidade de formação profissional não depende do MEC. Pelo contrário, a corrida por “cursos MEC” pode levar à mediocrização da formação profissional. Mas aguarde que ainda chego nisso.

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Quando olhamos pra regulamentação de profissões, tudo nos leva a crer que a necessidade de controle não está na real a serviço do consumidor, no sentido de protegê-lo. Porém, estamos tão acostumados ao discurso de que “é necessário regulamentar” profissões que ainda podemos resistir à ideia de profissões livres e exclamar: “Mas imagine que bagunça seria se não fosse a regulamentação!”.

Será? Será realmente que sem regulamentação não é possível organizar as coisas, por ordem no exercício de uma profissão livre? Será que realmente não tem como fugir da interferência do Estado pra arrumar a bagunça?

Eu quero falar do coach pra responder isso, esta profissão livre que está sob alvo de um Projeto de Lei (PL) de iniciativa popular pra criminalizá-lo.

O coach nasceu como uma ferramenta organizacional extremamente eficaz pra mudança de comportamentos em líderes. O coach é organizado em torno de escolas e associações livres em boa parte dos países ocidentais. Pelo menos duas dessas associações são internacionais e pautam o funcionamento do coach junto a quem realmente o compra, que são empresas e profissionais dentro de empresas. A crítica que hoje se faz ao coach são duas: aquela que é feita pelos CRPs (Conselhos Regionais de Psicologia), que acreditam que o coach é psicoterapia e querem garantir que apenas psicólogos regulamentados façam psicoterapia, e aquela que advém de sua popularização no mercado de auto-ajuda (life coach, wellness coach, coach de vendas, coach de You Tuber, coach de Fórmula do Lançamento, coach quântico etc). O PL de iniciativa popular que quer criminalizar o coach vem na esteira desta popularização. A pergunta é se a regulamentação do coach evitaria esses programas de auto-ajuda. Evitaria?

Não, mas é óbvio que não. Talvez eles não viessem com o nome de coach, mas viriam de toda forma, e unicamente por um motivo: o ser humano não abre mão de sua propriedade privada: o direito de exercer sua liberdade e criatividade pra se tratar do jeito que quiser, ganhar seu sustento do jeito que puder, seguir o que quiser seguir.

Profissões livres que são muito bem organizadas se valem de um pilar da democracia pra pôr ordem na bagunça: foi o pilar que pedi que retivesse na memória, o acesso à informação. Pra mostrar por que devem ser valorizadas, pra mostrar por que são sérias, auto-organizadas e auto-regulamentadas, por que não podem ser confundidas com picaretas, as profissões livres chegam a um ponto de organização e a partir dele lançam mão de várias estratégias de comunicação pra mostrar tudo isso. É assessoria de imprensa, é congresso, é simpósio, é meeting, é road show, é patrocínio etc.

Aliás, este PL da criminalização do coach só é posível de existir porque se sabe que há uma diferença grande entre coach e, nas palavras do PL, o “charlatanismo de muitos autointitulados formados sem diploma válido”. Curiosamente, o agora SUG 26/2019 tem mais votos de apoio à criminalização do coach, mostrando como é difícil, no Brasil, a mentalidade de não regulamentar profissões. Ou… não se trata de uma mentalidade difícil de mudar, mas do lobby de entidades profissionais que sabem que a regulamentação traz benefícios evidentes a eles próprios: reserva de mercado (ainda que seja uma reserva de mercado que dure apenas 50 anos, como está ocorrendo com o jornalismo).

***

Comecei este texto dizendo que ninguém pede regulamentação de uma profissão se não estiver a fim de a controlar. Mostrei que este controle é feito em nome do consumidor, mas o Estado já dispõe do aparato de segurança e justiça pra nos proteger, e mostrei que este “controle” poderia ser feito sem envolver o Estado, poupando recursos públicos, apenas amparado-o no acesso à informação de associações livres auto-organizadas que mostrassem ao consumidor como, quando e onde buscar um bom profissional livre. O que se assoma como razão mais forte pra profissionais livres pleitearem sua regulamentação, portanto, acaba sendo a reserva de mercado que querem garantir. Só que é feio dizer isso, então os profissionais alegam que a regulamentação lhes trará a tal “segurança jurídica” pra atuarem. Isso é real? Vamos ver.

Você é um aromaterapeuta feliz, que mora num bairro onde atende conhecidos e conhecidos de conhecidos, que estão igualmente felizes com você. Que grande inseguraça jurídica o fato da aromaterapia não ser regulamentada lhe traz? Por ela própria, nenhuma. É o fato das outras profissões de saúde serem regulamentadas que lhe traz insegurança, juridicamente falando.

Sim, claro, porque se nenhum médico achar que você está se metendo na área dele, se nenhuma esteticista achar que você está se metendo na área dela, se nenhum fisioterapeuta achar que você está se metendo na área dele, ninguém vai te encher o saco; e se você cometer algum crime contra a integridades de seu cliente de aromaterapia, você continuará tendo que responder a isso do mesmo jeito se fosse regulamentado. Então, perceba agora que apenas uma profissão regulamentada pode encher o seu saco, ao passo que nenhuma que não o seja encherá! Nenhum coach vai encher seu saco se achar que você entrou na área dele, nenhum terapeuta floral vai encher seu saco que achar que você entrou na área dele, nenhum radiestesista vai encher seu saco se achar que você entrou na área dele, nenhum constelador sistêmico, nada!

Perceba, com todo o discernimento que puder aplicar a esta questão, que a sua insegurança jurídica é causada não pela não-regulamentação a que você está sujeito, nem pelo cliente que você está atendendo, mas por quem quer a reserva de mercado pra atender o mesmo cliente que você, e por quem está sujeito a uma regulamentação que você não está!

É muito, muito, muito importante que você entenda isso, pois a insegurança jurídica não é causada pela ausência de regulamentação de uma profissão, mas pelo excesso de regulamentação das outras.

***

Ainda preciso falar sobre uma questão que deixei lá atrás: a mediocrização que regulamentações trazem à formação do profissional caso a formação precise ser obrigatoriamente do tipo MEC.

As profissões novas nascem, por definição, livres. Uma característica importante das novas profissões é que elas são inovadoras, atendem a mercados emergentes onde as velhas soluções não entregam mais, ou não entregam mais com a mesma relação custo x benefício. A inovação está no cerne das novas profissões.

O que nós sabemos com décadas de estudo sobre inovação é que ela só se desenvolve em ambientes onde haja autonomia e independência. Também sabemos que o preço deste ambiente é um risco maior de fracasso, de onde a necessidade das famosas soft skills pra se trabalhar com inovação: resiliência e automotivação.

Tudo que uma regulamentação MEC faz é cortar na carne a capacidade inovadora na educação. Duvida? Veja:

  • um curso livre é ofertado de inúmeras formas: presencial, online, misto; com mais horas, menos horas, com matérias óbvias, outras menos, sempre se adaptando, sempre se modificando não apenas conforme o corpo de conhecimento daquela profissão nova se forma, mas também verificando o êxito da formação ofertada quando os profissionais formados colocam o que aprenderam no mercado. Uma vez que um curso entre na formatação MEC, ele enrijece, e sua capacidade adaptativa e inovadora fica limitada e constrangida;
  • um curso livre toma do mercado os melhores profissionais, porque seu único valor é seu corpo docente. Como ninguém de fato precisa fazer um curso livre pra exercer a profissão na qual ele está formando – a profissão é livre, lembra? – , a única razão pra alguém querer pagar pra cursá-lo é o fato do curso realmente o formar. Já um curso MEC tem seu valor inalienavelmente atribuído ao “diploma” que entrega, sem o qual a pessoa não tem como trabalhar. O que ocorre é que o corpo docente passa a ser menos importante que o “diploma MEC”, e o aluno fica menos comprometido com a própria formação, reproduzindo comportamentos famosos como aquele de “pedir pra assinar sua presença na aula” porque ele tem coisa mais importante pra fazer. Todo um setor de educação privada cresce e se desenvolve dentro da mediocridade, unicamente devido à necessidade legal de diplomas. E a única forma de assegurar que continuem ganhando dinheiro por ofertar um ensino medíocre é garantindo que cada vez mais profissões sejam regulamentadas. Assim, nunca precisarão investir pra ter os melhores professores, o que atrairia matrículas, contanto que o lobby continue lhes dando um fornecimento constante de profissões regulamentadas que requeiram um diploma MEC.
  • quando uma profissão livre passa a ser regulamentada e na esteira da regulamentação vem a exigência de um diploma MEC, ela encontra poucos professores disponíveis com titulação acadêmica pra ensiná-la dentro de faculdades. E isso ocorre justamente porque o conhecimento daquela profissão não estava nas faculdades, mas fora delas, no mercado de trabalho! No entanto, como as faculdades precisam montar seu corpo docente, recrutam seus mesmos professores e pedem que se atualizem da forma que der naquele novo campo de conhecimento pra que possam abrir o curso. E são estes professores recrutados de última hora que passarão a formar pessoas, que seguramente estariam sendo mais bem formadas por quem já estava na área, construindo-a com trabalho, experimentação e testes no mercado.
  • quando uma profissão livre passa a ser ofertada dentro do contexto MEC, o acesso a ela fica mais restrito e caro. Se hoje bons aromaterapeutas conseguem se formar em cursos livres, que são mais baratos, mais curtos e mais acessíveis, imagine o que seria você ter que prestar um vestibular, pagar durante 4 anos uma faculdade pra poder ser aromaterapeuta. Imagine que hoje os cursos livres atendem não aquela parcela de jovens que estão saindo do Ensino Médio, mas pessoas que estão na sua segunda ou terceira profissão, que estão colocando a aromaterapia como uma alternativa de renda em suas vidas, que já fizeram uma faculdade, têm mais de 30 anos – imagine pedir-lhes que voltem a fazer cursinho, prestem vestibular, fiquem 4 anos de suas vidas trancadas numa faculdade sendo que elas poderiam aprender tudo o que já aprendem em cursos livres.

***

Depois do exposto, eu ainda tenho que responder a uma pergunta comum sobre a necessidade da regulamentação de profissões como aromaterapia: “Não seria certo regulamentá-la pra que aromaterapeutas possam ser contratados no SUS?”.

Pro raciocínio que vou desenvolver tenho que pedir desculpas antecipadamente, porque preciso escancarar o quão corporativista e egoísta é esta pergunta. Devolvo outra: “E que direito têm os aromaterapeutas de trabalharem no SUS que é tão maior que o direito de outros profissionais de saúde, que já estão lá, de aplicar a aromaterapia?”.

Eu sei que é bastante duro ouvir isso e sei que parece que não estou defendendo os aromaterapeutas, mas é exatamente o contrário. Quando aquela portaria do MS incluiu a aromaterapia e mais 9 PICS no SUS, pegou-nos a todos de surpresa. E eu a critiquei duramente.

Meu principal motivo é que, a despeito do Brasil ter uma legislação ótima em relação às PICS, a despeito de eu defender e desejar que nosso sistema de saúde inclua ao paradigma biomédico o paradigma vitalista, impor isso a um sistema que sequer consegue oferecer o básico do paradigma biomédico às pessoas é injusto para com elas, para com o profissionais que hoje trabalham no SUS, além de iludir os terapeutas integrativos quanto à capacidade que as PICS têm de serem aceitas por força de lei. Tudo que a portaria fez foi colocar mais 10 PICS numa espécie de vitrine aberta pra levar chapoletada e vaias daqueles que as acusam de “roubarem” recursos da saúde básica.

Estou ciente do desafio que o envelhecimento da população traz ao SUS, que é torná-lo um sistema capaz de atender não apenas doenças agudas, mas crônicas, onde as PICS justamente se mostram muito eficazes. Porém, entendo que, se já temos homeopatia, MTC, fitoterapia e medicina antroposófica disponíveis no SUS, não seria o caso de as fortalecer em vez de dividir o potencial que têm de crescer incluindo mais PICS? Por que temos a arrogância de acreditar que a a aromaterapia seria melhor que qualquer uma dessas abordagens já consolidadas no SUS a ponto dela requerer recursos públicos próprios e profissionais próprios? Veja que quando se defendem as PICS dentro do SUS, mas se torna esta defesa a defesa daquela PIC que é minha profissão, em detrimento da PIC que não é minha profissão, deixamos de defender as PICS e passamos a defender a nossa corporação, a corporação que cada uma delas representa.

Se estivéssemos desinteressadamente defendendo a mudança de paradigma que as PICS têm chance de trazer ao SUS, entenderíamos que só de fortalecer a acupuntura, a homeopatia e a fitoterapia já teríamos uma boa briga pra mais de 50 anos. Nós nos focaríamos nisso e poderíamos estar direcionando nossos esforços mais sensatamente, como por exemplo na direção de que a aromaterapia fosse mais usada na acupuntura e na fitoterapia, em vez de dividirmos as forças tentando impor a aromaterapia como disciplina isolada dentro do SUS.

E não seria injusto não darmos oportunidade a aromaterapeutas de atuarem no SUS? Não, não seria, justamente se entendêssemos que nosso objetivo é que a aromaterapia esteja no SUS, em vez de usar o SUS pra dar emprego a aromaterapeutas.

Ou é isso que você quer? Ou é esta afinal toda sua motivação, virar funcionário público do SUS? A minha não é, não mesmo! Não acho nem um pouco correto impormos ao SUS a contratação de novas categorias profissionais, pelo contrário. Como os recursos do SUS são limitadíssimos, eu penso que o SUS deva ter profissionais com a formação mais ampla possível, que possam atender a demandas múltiplas. E esses profissionais hoje, no Brasil, lamento informar, não são os terapeutas integrativos, mas são os médicos, os enfermeiros e os farmacêuticos. Se eles pudessem se abrir pra a aromaterapia e pras demais PICS, nosso objetivo maior – que é levar as PICS aos usuários do SUS em vez de darmos emprego a terapeutas integrativos no SUS – seria amplamente satisfeito.

Por isso, embora eu preferisse que não houvesse tido a ampliação das PICS no SUS, já que houve, eu rogo para que sua defesa não se torne a defesa do corporativismo profissional de terapeutas integrativos, nem de aromaterapeutas.

Eu disse que esta minha posição defende os aromaterapeutas. Por quê? Vou explicar.

Quando queremos que o aromaterapeuta, ele próprio, seja empregado no SUS, esta defesa passa obrigatoriamente pela defesa de que a profissão seja, pelo menos, reconhecida, já que não é possível abrir um edital nem um concurso pra contratar um profissional que não existe. O reconhecimento de uma profissão, o reconhecimento da aromaterapia é uma coisa que acho até bacana. Resolveria algumas questões burocráticas sem causar maiores danos. O problema é que um aromaterapeuta trabalhando no SUS, se estivesse na situação de ter sua profissão apenas reconhecida, não-regulamentada, seria uma situação impossível, porque seria necessário definir o escopo de sua atuação, até pra que o aromaterapeuta não começasse a entrar em conflito com o escopo de ação dos demais profissionais regulamentados. Então, pra termos aromaterapeutas no SUS, fatalmente teríamos que regulamentar a profissão, e daí você já leu os prejuízos que a regulamentação traz. Se você chegou até aqui e não entendeu todos os senões que existe na regulamentação da aromaterapia (e em regulamentações de profissões no modo geral), sugiro que releia tudo desde o início.

***

Existe um outro imbróglio dentro do SUS em relação à aromaterapia. Resolvê-lo implicaria dar uma legalidade à aromaterapia que eu duvideodó que a ANVISA queira dar: assumir que os óleos essenciais são substâncias com princípios-ativos terapêuticos que não precisam ser registrados como medicamentos.

No Glossário das PICS publicado pelo MS, os óleos essenciais foram definidos como “substâncias vitais” que podem ter certas ações terapêuticas, como o poder antisséptico, antibacteriano e anti-inflamatório contra fungos e bactérias, e como auxiliares em processos psíquicos tais como depressão, ansiedade e distúrbios do sono. A crítica que eu fiz a esta definição super em cima do muro é que com ela o MS criou um novo tipo de substância terapêutica, algo muito parecido com magia, pois são vitais (contêm energia vital) mas apresentam atividade farmacológica! Perceba que o MS evitou usar o termo princípios-ativos na definição dos óleos essenciais justamente pra não arrumar encrenca. Mas como ficaria ridículo o MS sustentar o potencial terapêutico dos óleos essenciais se dissesse que eles são apenas um perfume natural, veio com esta de substâncias vitais. Só que substâncias vitais com expressão igual a de medicamentos: antissépticas, antibacterianas e anti-inflamatórias!

Ao escolher não definir claramente o que são os óleos essenciais – substâncias que contêm princípios-ativos -, o MS não comprou de fato a briga pela aromaterapia dentro do SUS e nem fora dele. O MS deixou o flanco aberto pra que a aromaterapia continue sendo acusada de charlatanismo (como de fato foi), pois como uma “substância vital” poderia agir sobre bactérias e fungos com eficácia comprovada cientificamento em estudos de fase 1, 2, 3, 4?! Se eu passar meu cuspe numa ferida – e veja que nada haveria de mais vital que o cuspe, fresquinho saindo de dentro da boca de um organismo vivo -, o cuspe, com sua vitalidade, mataria bactérias? Bom, talvez a vitalidade do cuspe não seja tão forte assim? A vitalidade da minha urina, Ministério da Saúde, quem sabe, talvez?

Este flanco que o MS deixou aberto quando não definiu adequadamente os óleos essenciais me fez desconfiar – e muito! – da intenção daquela portaria que incluiu a aromaterapia no SUS, e entender que aquilo foi muito mais pra criar um palanque ao combalido governo Temer, além de garantir a reeleição do então ministro Ricardo Barros, que veio a se reeleger, de fato, deputado federal pelo Paraná.

Se o MS tivesse a fim mesmo de comprar a briga da aromaterapia, ele resolveria o maior dos problemas que temos hoje em relação a ela: nos daria uma legislação específica pros óleos essenciais, uma que os retirasse de vez da categoria de cosméticos ou aromas alimentícios, sem dar nenhuma margem pra que tivessem que ser tratados como medicamento, fitomedicamento ou suplemento alimentar. Se o MS estivesse realmente interessado em defender a aromaterapia enquanto PIC, ele teria tido a coragem de desafiar sua ANVISA a endereçar de uma vez por todas a questão da legislação da venda de óleos essenciais diretamente ao consumidor, dando-nos uma legislação própria, de vanguarda, moderna, corajosa, colocando os óleos essenciais dentro do que de fato são, matérias-primas com princípios-ativos e com energia vital, que atuam nas três esferas do ser humano, a física, a psíquica e a energética, que têm todo o potencial terapêutico que lhes é cabível ter, desde o que se sustenta na atividade bioquímica de suas moléculas, até o que se sustenta na vitalidade da planta de onde vieram. Isso é que seria uma defesa da aromaterapia! Além de que teria sido honesto. E é nisso que nós, aromaterapeutas, deveríamos estar agora mesmo focando – e não apenas na possibilidade de sermos contratados pelo SUS. Por favor, né?

O desejo de regulamentar a aromaterapia assanha os desejos corporativistas em relação à aromaterapia: controlá-la, colocá-la numa reserva de mercado, restringi-la, domá-la. Passamos a querer que a aromaterapia seja unicamente nossa – quando a aromaterapia é da humanidade. Nós apenas servimos à aromaterapia.

Quando passamos a querer que apenas aromaterapeutas tenham a legitimidade de trabalhar com os óleos essenciais, agimos como se esquecêssemos que as plantas é que são donas dos óleos essenciais em primeiro lugar – nós apenas os estamos tomando emprestado. O que nós aromaterapeutas devemos fazer é querer que a aromaterapia seja livre, assim como os óleos essenciais querem que nós sejamos livres e gozemos plenamente de nossa saúde e livre-arbítrio. O que nós aromaterapeutas podemos no máximo fazer é correr atrás de nossos próprios esforços pra que sejamos aqueles profissionais que mais bem compreendem os óleos essenciais, mas não temos o direito de proibir que as outras profissões empreendam os mesmos esforços. Se fizermos nossa lição de casa direito, demostraremos nosso valor à sociedade em vez de impor a ela o valor que achamos que temos com uma regulamentação que crie nossa reserva de mercado.

As pessoas devem escolher aromaterapeutas não porque criamos uma reserva de mercado pra isso (foi o que médicos fizeram, o que farmacêuticos fizeram, o que psicólogos fizeram, o que fisioterapeutas fizeram – você realmente quer fazer o mesmo que eles?!), mas porque provamos nosso valor a elas, e então elas voluntariamente preferiram recorrer a nós que a qualquer outro profissional, mesmo que outro profissional também use óleos essenciais. Quando nós, que trabalhamos com PICS, enchemos a boca com orgulho pra dizer que não atendemos pacientes mas sim interagentes, não podemos querer interagentes que não puderam ser ativos na hora de escolher com que profissionais dos óleos essenciais desejam se tratar porque fizemos uma reserva de mercado de aromaterapia pra nós e só sobrou a gente. Se de fato acreditamos no conceito de interagência, e não apenas da boca pra fora, temos que ter a coragem de deixar que as pessoas exerçam seu direito de escolher se tratar com OEs onde os OEs estiverem disponíveis, e não apenas com nossa corporação regulamentadinha por força da lei. (E isso vale pra todas as demais PICs que desejam ser regulamentadas.)

Eu defendo uma aromaterapia livre.

Eu defenderia uma medicina livre também, se ela ainda estivesse em sua infância como a aromaterapia está. Mas uma pessoa aos 45 anos idade só tem permissão pra pensar no ideal com uma ideia de cada vez. O que teria sido libertar a medicina é mais de uma ideia. Mas manter a aromaterapia livre – em prol de seu amplo acesso a todos os brasileiros e brasileiras – é uma ideia singular.

Ou no mínimo é uma ideia pra nossa geração. Não devemos nos importar com o que as futuras gerações fizerem com a aromaterapia – não estaremos aqui pra saber. Mas enquanto em nosso horizonte houver pessoas que conhecemos ou conheceremos querendo usar os óleos essenciais, devemos almejar lhes dar total liberdade de fazê-lo. E esta liberdade implica a não-regulamentação da aromaterapia, além do enfrentamento de uma legislação própria pros óleos essenciais.

Na verdade, eu queria dizer que não é possível que não nos comprometamos por completo com o novo paradigma em saúde que tanto desejamos: um no qual as pessoas sejam tratadas por inteiro, e tenham seus desejos, suas escolhas, sua liberdade e sua individualidade respeitadas.

De todos os ângulos que enxergo, criar uma reserva de mercado com a regulamentação das PICS e da aromaterapia me parece tudo menos algo alinhado a este novo paradigma. Como conseguiremos criar algo novo usando os mesmos truques do paradigma que, com sua mania de nos controlar, justamente nos trouxe até aqui? Como criaremos a liberdade que a aromaterapia tem potencial de dar constrangendo-a numa regulamentação? Como mostraremos a liberdade que as PICS trazem defendendo que elas sejam regulamentadas como todas as profissões de saúde tradicionais o são?

Nós temos de manter a aromaterapia livre, ou seremos iguais àquilo que tanto criticamos e que queremos mudar.

Obrigada por sua leitura até o final.

Com um beijo, Mayra.

***

Declaração de responsabilidade: As opiniões deste texto são de minha inteira responsabilidade e não expressam as opiniões nem da ABRAROMA, associação na qual ocupo neste momento o cargo de presidente, nem do IBRA, associação da qual sou professora.

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