Casa Máy > Diversos > Sobre o âmbar gris

< voltar

Sobre o âmbar gris

Postado às 15:14 do dia 05/08/14

Não há matérias-primas perfumísticas de origem animal que podem ser classificadas como éticas. Uma exceção talvez seja o âmbar gris.

Âmbar gris. Foto: www.ambergris.com.nz

Âmbar gris. Foto: www.ambergris.com.nz

O âmbar gris (ambre gris, em francês; grey amber, em inglês) é produzido dentro do estômago das baleias cachalotes e, em algum momento, regurgitado. Elas se alimentam de lulas e os bicos das lulas acabam ferindo seus estômagos e talvez seja por isso que regurgitem, embora se encontre âmbar gris sem nenhum bico misturado às secreções gástricas.
Uma vez que esse produto seja regurgitado (há quem defenda que ele seja, na verdade, defecado), ele fica flutuando no mar e vai sendo “curtido” tanto pelo movimento das ondas, quanto pelo sol e demais componentes da água salgada. Eventualmente, o âmbar gris chega à praia e é coletado por algum sortudo, já que o produto vale alguns milhares de dólares por libra. Infelizmente, existe a pesca – e por isso eu disse que talvez o âmbar gris não seja ético. Evidentemente, será um produto de origem animal ético se for encontrado flutuando no mar ou nas encostas, mas certamente será fruto da mais desgraçada ambição se matarem a baleia e depois rasgarem sua barriga para retirá-lo lá de dentro. Foi esse tipo de pesca predatória que colocou a espécie cachalote em risco de extinção, apesar do âmbar gris ser encontrado em baleias pescadas apenas entre 3 a 4% das vezes.
Depois de algumas décadas pagando a baleeiros, a indústria resolveu atender ao apelo de consumidores preocupados com o sofrimento animal e encontrou substitutos sintéticos à matéria-prima natural. Não sejamos inocentes: raro e caro – e por isso chamado de “ouro flutuante”, o âmbar gris autêntico traz prejuízos a casas de fragrâncias e empresas que contam em centenas os lançamentos de perfumes num único ano. Muito mais lucrativas são as moléculas sintéticas que impõem a reformulação de fórmulas antigas e empurram todo um novo ciclo de vida a perfumes antigos.
A primeira alternativa ao âmbar gris surgiu em 1950, o Ambroxan (ou Ambrox), sintetizado a partir do álcool diterpênico esclareol, encontrado na Salvia esclarea. Comercializado sob o nome de Celatox (R) pela Firmenich e Ambrofix (R) pela Givaudan, rapidamente dominou o mercado, embora traga alguns desafios: como a presença de esclareol é sempre pequena no óleo essencial de sálvia esclareia, cientistas tentam cruzar o DNA da planta a determinadas bactérias no intuito de que estas produzam os precursores de síntese necessários à molécula final. Contornando este desafio, também é possível sintetizar o Ambroxan a partir do abienol do abeto balsâmico.
Proibido desde 1972 nos Estados Unidos, o âmbar verdadeiro segue sendo substituído por outros odorantes de laboratório, como Cedramber (R), Spirambrene (R) e  Okoumal (R). Entretanto, eles não chegam a mimetizar todas as notas encontradas num âmbar natural. Se estivermos cheirando o âmbar gris autêntico, estaremos diante de um dos mais misteriosos ingredientes naturais da perfumaria. Uma vez expelido pela cachalote, o material envelhece naturalmente no mar ou, coletado, é posto para envelhecer, se bem que isso possa ser um processo que leva anos. No ponto certo, é feita uma tintura com 96% de teor alcoolico durante 12 a 18 meses e as notas que surgem podem ser seis:
1. solo úmido e coberto de musgo de uma floresta
2. tabaco acentuado
3. nota balsâmica de sândalo
4. almíscar animal, quente
5. nota oceânica e de algas
6. nota fecal
O Ambroxan é tido como o odorante que mais se aproxima da substância natural, cobrindo as quatro primeiras de suas nuances. Mas a verdadeira qualidade odorífera do âmbar gris se revela não tanto pelo que ele exala por si, mas no quanto é capaz de se combinar aos demais ingredientes de um perfume, ressaltando-os. Ainda utilizado na perfumaria botânica natural, Anya McCoy diz que ele possui “qualidades transformativas”. Mandy Aftel, outra perfumista de antiquário, fala de sua qualidade “brilhante”, como se ele fosse uma “pedra preciosa” dentro do perfume.
Em 1820, dois cientistas franceses, Joseph-Bienaimé Carentou e Pierre-Joseph Pelletier, isolaram, pela primeira vez, o ambrein (do inglês), um álcool triterpênico no âmbar gris que, puro, é inodoro, mas oxidado forma moléculas fragrantes. A ele se seguiram o epicoprostanol e o coprostanone. Em 1977, Mookherjee e Patel identificaram 100 componentes fragrantes do âmbar gris (boa parte do âmbar gris também é colesterol). Essas são moléculas classificadas como diterpenos labdanoides, isso é, polímeros também presentes no âmbar-resina, uma substância que pode ter três origens distintas: chamada âmbar, é a resina fossilizada de espécies pré-gimnospermas do período Carbonífero (anteriores a 40 mil anos atrás); chamada resina, se refere à resina de espécimes de até 250 anos; e chamada resinite quando for encontrada no carvão.
Da mesma forma que é fácil um desavisado confundir qualquer pedra achada na praia com âmbar gris, é fácil confundirmos âmbar gris com âmbar na perfumaria. O âmbar da perfumaria é uma nota-fantasia criada a partir do Cistus ladanifer (ládano ou lábdano) e, se evoca algo da resina fossilizada de coníferas pré-históricas é a cor, mas não o cheiro. Criada com ládano, benjoim e baunilha (Mandy Aftel, no livro Essências e Alquimia, combina 20 gotas de ládano, 120 de benjoim e 6 de baunilha), o âmbar é licoroso, doce, quente e tem a cor dourada da resina fóssil. Certamente não se parece com o âmbar gris.
O âmbar gris, para desespero de caçadores de preciosidades praianas, frequentemente se confunde com pedras ou com piche misturado a outros sedimentos. Porque o formato de um pedaço de âmbar gris varia bastante, do oval ao redondo, do achatado ou quadrado, porque sua cor varia do preto viscoso (quando fresco) ao acinzentado e branco, o teste que compradores de âmbar gris sugerem ser feito é que se aqueça uma
agulha e a enfie na superfície: se o local derreter, soltando um óleo grudento preto e uma fumacinha com cheiro almiscarado, há chances de ser legítimo.
Outra informação para você desconfiar se encontrou âmbar gris na praia e ficou rico é a praia em si: mesmo considerando que as correntes marítimas têm poder de arrastar para Caraguatatuba, Matinhos ou Praia Grande grandes quantidades de lixo oceânico, o âmbar gris é mais comumente encontrado na Nova Zelândia, leste da Índia, Áfricas Oriental e do Sul, Madagascar e Noruega. Tá, Arctander, no seu famoso livro Perfume and flavor materials of natural origin de 1960 disse que também se encontra no Brasil, mas se nem petróleo do pré-sal temos visto por aqui, que dirá âmbar gris, né?
A título de história, antes do primeiro milênio de nossa era os chineses já falavam do âmbar, mas não conheciam sua origem: achavam que era a baba de dragões que moravam à beira do mar. Mas nem mesmo Avicena, que viveu no século X-XI, sabia desconfiava que a origem da substância fosse marinha e, apesar disso, ela foi foi amplamente usada por árabes como remédio para o coração e para o cérebro. Nos contos das Mil e Uma Noites, Simbad se depara com uma ilha onde há uma fonte de âmbar gris. Foi apenas no final do século XVIII que o botânico Joseph Banks elucidou a origem correta do âmbar gris. Mas isso não impediu que Luís XV mandasse que o utilizassem em seus pratos preferidos e que a rainha Elisabeth I perfumasse com ele suas luvas. Regurgitado ou defecado, é substância desejada – é como ouro.
Um beijo de cheiro, Mayra.
Veja imagens de âmbar gris em nossa galeria do Pinterest – clique aqui.
***
Fontes consultadas em 05/ago/14:
http://www.cnrs.fr/cw/dossiers/doschim/decouv/parfums/loupe_ambre.html
A Geochemical Investigation of Carboniferous Amber de P. Sargent Bray (Google Books) (http://migre.me/kS2Rt)
http://www.ambergris.co.nz/
http://www.fragrantica.com/news/Amber-and-Ambergris-are-Two-Different-Notes-2929.html
http://allnaturalbeauty.us/ani65.htm
http://www.gizmag.com/ambergris-clary-sage-substitute/26409/
http://pellwall-perfumes.blogspot.com.br/2013/04/ambergris-substitutes-clarification-of.html
http://www.bojensen.net/EssentialOilsEng/EssentialOils01/EssentiaOils01.htm

Posts Relacionados

Comentários

Assinar Newsletter