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Um general na biblioteca – Ítalo Calvino

Postado às 21:45 do dia 30/12/14

Do espólio de Ítalo Calvino (1923-1985) saíram textos sensacionais e outros nem tanto. Um general na biblioteca fica na casa dos 50% ótimo, 50% normal. Há quase-contos, contos de fato, e contos intermináveis. Espanta sempre a criatividade absurda em Calvino, mesmo quando produziu sob encomenda, como fica demonstrado por A glaciação, a pedido de uma destilaria japonesa, e O incêndio da casa abominável, encomendado pela IBM mas que acabou sendo publicado pela revista Playboy. Aliás, este conto foi redigido para o experimento Oulipo (veja livros de dois representantes do movimento resenhados aqui: Georges Pérec e Raymond Queneau), mostrando-nos mais esta faceta do autor.

Um ponto que quero ressaltar nesta tradução é o da escolha, para a coletânea, do título Um general na biblioteca em vez de Antes que você diga “Alô”, que é o escolhido para o original (Prima che tu dica “Pronto”). Talvez aqui no Brasil venda-se mais Calvino por suas fábulas, ou por sua militância, que por seu lirismo. Antes que… é um conto mais bonito, menos óbvio, infinitamente mais sutil que Um general… Perdê-lo como chamariz é um reflexo de que, neste país, nenhuma chatice política parece ser suficiente.

Pincei inúmeros trechos do livro. As partes legais. Espero que goste.

 

 

Instantes iluminadores

“Mas, mesmo agora, toda vez (frequentemente) que me acontece não entender alguma coisa, então, instintivamente, me vem a esperança de que seja de novo a boa ocasião para que eu volte ao estado em que não entendia mais nada, para me apoderar dessa sabedoria, encontrada e perdida no mesmo instante.” (de O raio, p. 15)

– Este conto é o segundo do livro e tem muito significado a todos que praticam yoga e meditação. Quando a mente esvazia, tudo parece estranho, mas então é quando tudo está certo, certinho no seu lugar.

“Estico o braço para o chuveiro, ponho a mão na torneira, mexo-a lentamente fazendo-a girar para a esquerda.

Acabo de acordar, ainda sinto os olhos cheios de sono, mas estou perfeitamente consciente de que o gesto que faço para inaugurar meu dia é um ato decisivo e solene, que me põe em contato ao mesmo tempo com a cultura e a natureza, com milênios de civilização humana e com o trabalho de eras geológicas que moldaram o planeta. O que peço à ducha é, antes de mais nada, me confirmar como senhor da água, como pertencendo àquela parte da humanidade que herdou dos esforços de gerações a prerrogativa de chamar a si a água com a simples rotação de uma torneira, como detentor do privilégio de viver num século e num lugar em que se pode gozar a qualquer momento da mais generosa profusão de águas límpidas.” (de O chamado da água, p. 188)

– Não dá nem pra comentar, né? Humpf. Talvez, uma hashtag: #emSPsoquenao

“Aqui estou, pois, pronto para receber a água, não como algo que me seja naturalmente devido, mas como um encontro amoroso cuja liberdade e cuja felicidade são proporcionais aos obstáculos que ela teve de superar. Para viver em plena intimidade com a água, os romanos puseram as termas no centro de sua vida pública; hoje, para nós essa intimidade é o coração da vida privada (…)” (de O chamado da água, p. 192)

– Uma curiosidade: franceses ricos nos séculos XVII e XVIII expunham sua intimidade com a água quando faziam subir até o primeiro ou segundo andar dos edifícios em que moravam uma banheira cheia. Como a bomba d´água só foi ser conhecida na revolução industrial, se você tomasse banho naquela semana, todos da rua saberiam.

 

 

Carrascoza

“E me vi na minha impossibilidade de conciliar-me com o mundo ao redor, escarpado e calcinado como eu era por dentro e com rasgos de cores de uma intensidade quase escura, como gritos ou gargalhadas. E por mais que eu me esforçasse para pôr palavras entre mim e as coisas, não conseguia encontrar nada apropriado para revestir essas coisas; porque todas as minhas palavras eram duras e mal talhadas: e dizê-las era como colocar pedras. (de O rio seco, p. 17)

– Dá licença que meus autores modernos preferidos são Calvino e João Anzanello Carrascoza, então é inevitável eu ouvir um no outro, a poética do silêncio.

“Induzia-me – era verão – um desejo de água, religioso, quase de um rito. Descendo naquela tarde pelas videiras, eu me preparava para um banho sagrado, e a palavra ‘água’, para mim já sinônimo de felicidade, dilatava-se em minha mente como nome ora de deusa ora de amante.” (de O rio seco, p. 18)

– Há vários contos de Carrascoza sobre férias na praia.

 

 

Comparações

“Embora fosse na vida casto como um quaker, nas conversas era, ao contrário, obsceno como um sátiro.” (de O rio seco, p. 18)

– Todos podemos ser charmosos usando a própria sombra.

“A sociedade agora se rege por essa assimetria dos homens: é um encaixe de cheios e vazios.” (de A ovelha negra, p. 33)

– Deve ter sido difícil abandonar a ideia de que todos os homens deveriam ser iguais. Também está sendo difícil abandonar a ideia de que pode haver quem mereça/queira/opte por/precise de ser vazio. Para este enigma, a política não oferece respostas e a espiritualidade ainda parece distante dela.

“Só que para as mulheres é mais fácil. A vida corre dentro delas, grandes rios dentro delas, as continuadoras, há a natureza segura e misteriosa dentro delas. No passado, havia o Grande Matriarcado, a história dos povos fluía como a das plantas. Depois, o orgulho dos zangões: uma revolta, eis a civilização.” (de Amor longe de casa, p. 45)

– Adorei “uma vida transcorrer como a das plantas”.

“(…) os dramas de Umberta eram dramas de ricos, que quanto maior é a soma envolvida mais nos parecem leves.” (de O colar da rainha, p. 88)

– Definitivamente. Chega uma hora em que o valor é tão alto que fica inapreensível.

“Era um desses sujeitos, Enrico, que acreditam se basear em coisas e ideias, mas que, ao contrário, não têm outra razão de viver além das instáveis, intricadas relações com o próximo (…)” (de O colar da rainha, p. 91)

– Tá lotado de gente assim, e também do tipo contrário: que diz que age em função dos outros, mas na verdade está possuído por uma ideia.

“Se não se podia dizer que o aspecto da casa tivesse melhorado muito desde o dia em que a família ali se instalou, era porque Fiorenzo, quando foi habitá-la, parecia mais próximo do espírito de um primitivo que se entoca numa gruta natural do que de um engenhoso náufrago ou pioneiro, que se esforça em fazer reviver ao seu redor algo da civilização deixada na terra natal. “ (de O colar da rainha, p. 95)

– E aí, queridos, vocês estão mais pra primitivos ou pra naúfragos em termos de lar?

 

 

L’amor è pazzo e cieco

“Sobre altos rochedos brancos, promessa de aventura para os olhos, sentavam-se duas, três, talvez quatro senhoritas, em trajes de banho. Maiôs vermelhos e amarelos – também azuis, é provável, mas não me lembro: meus olhos só precisavam do vermelho e do amarelo – e touquinhas, como uma praia na moda.” (de O rio seco, p. 19)

– Coisinha delicada os arroubos de amor juvenil.

“(…) agora nos perseguimos, brincamos de dentes trincados, o amor, é isso o amor de um pelo outro, desejo mútuo de arranhões e mordidas, socos também, na costas, depois um beijo exausto: o amor.” (de Amor longe de casa, p. 44)

– Simplesmente encantador ele terminar a frase com “dois pontos”, “o amor”. Não se explica por demais o amor. O amor é, dois pontos, amor.

“Não sei como ela faz, Ada Ida, como fazem todos os outros, mulheres e homens, que conseguem ter intimidade com todos, que encontram algo a dizer a todos, que entram nos assuntos dos outros e fazem os outros entrarem nos seus assuntos.” (de Vento numa cidade, p. 52)

– Acho tão engraçado meu marido: ele dá palestras, atende pessoas com coaching, recruta presidentes de empresas, fecha contratos diariamente, mas é incapaz de conversar com homem ou mulher numa festinha de crianças. Ele sempre diz: não tenho assunto. E não está sendo cínico.

“(…) parto para poder lhe telefonar diariamente, porque sempre fui para você e você sempre foi para mim a outra ponta de um fio, aliás de um cabo coaxial de cobre, o outro polo de uma corrente sutil de frequência modulada que corre pelo subsolo dos continentes e pelos fundos oceânicos.” (de Antes que você diga ‘alô’, p. 177)

“É nesse silêncio dos circuitos que estou falando com você.” (de Antes que você diga ‘alô’, p. 181)

“Desde então a distância é a urdidura que sustenta a trama de toda história de amor como de toda relação entre os vivos (…)” (de Antes que você diga ‘alô’, p. 181)

– Este é o conto que dá título à coletânea no original. DEVE ser lido, pois oferece múltiplas reflexões nestes tempos de internet, quando podemos fazer amigos insuperáveis pelo Facebook e não manter nenhum na vida de carne e osso, um conto que antecipa a discussão do filme Ela (Her, 2013) mas sem o finalzinho preciso-concluir-o-assunto que ele oferece.

“Hoje, remexendo na memória, tenho outra dúvida: ou sou eu que não sou capaz de entender uma mulher, se ela não esconde nada de si; ou era Sofia que aplicava uma tática muito refinada para não se deixar capturar por mim, manifestando-se justamente com tanta prolixidade.” (de As memórias de Casanova, p. 206)

– Então quer dizer que a extroversão é sedutora?

 

 

Paisagens

“Mergulhei descalço e despido: era uma água vegetal, apodrecida por um lento esfarelar de plantas fluviais.” (de O rio seco, p. 20)

– Você nunca conseguirá descrever um rio lamacento tão bem.

“Havia um país onde todos eram ladrões.

À noite, cada habitante saía, com a gazua e a lanterna, e ia arrombar a casa de um vizinho. Voltava de madrugada, carregado, e encontrava a sua casa roubada.” (de A ovelha negra, p. 27)

– Não que Calvino precisasse deste recurso, mas posso imaginá-lo, numa noite quando (raramente) lhe faltassem ideias, pegar uma exceção qualquer e transformá-la em regra pra criar uma história. Ele fez muito disso.

“Às vezes um trem vai embora pelos trilhos à beira-mar e nesse trem estou eu, que parto. Pois não quero ficar no meu povoado, cheio de sono e hortas, decifrando as placas dos carros estrangeiros como o rapaz montanhês sentado no parapeito da ponte. Vou embora; tchau, aldeia.” (de Amor longe de casa, p. 41)

– Consegue pensar num começo de conto tão irreverente e poético? E o que seria exatamente decifrar as placas de carros? Lembro que temos, num período em que somos crianças, manias com placas de carros: somar os números, contar quantas terminam em zero, em um, etc, de que cidade são. Mas o quê exatamente este montanhês estaria procurando? Quando você ler o conto, perceberá que nesta frase reside todo o enigma.

“Quando o vento nasce na cidade e se propaga de bairro em bairro como línguas de um incêndio incolor (…)” (de Vento numa cidade, p. 50)

– Conseguiu imaginar, não conseguiu? Ondas de calor no Brasil também se movimentam do mesmo jeito. Não sobra nenhum canto fresco onde sobreviver.

“A história da América é uma história de deslocamentos entre horizontes infinitos, uma história de meios de transportes: o cavalo, as carroças dos pioneiros, as ferrovidas… Mas só o automóvel deu aos americanos a América.” (de Henry Ford, p. 212)

– Ferrou! É agora que nunca teremos o Brasil: não nos decidimos se é melhor IPI zero pra carros ou pra bicicletas.

 

 

Resumo da ópera

“Acho que o temperamento das pessoas também depende do banheiro em que são obrigadas a se trancar diariamente.” (de Vento numa cidade, p. 52)

– De onde se deduz que empreendedores são aqueles que constroem o próprio banheiro, porque não querem ser obrigados a usar o alheio.

“Ouça: a mentira é a verdadeira informação que temos de transmitir.” (de A memória do mundo, 122)

– Não posso discordar, ou estaria mentindo.

“As verdadeiras guerras e as verdadeiras pazes não ocorrem na terra, mas entre os deuses.” (de Montezuma, p. 175)

– Este conto Montezuma precisa ser lido pra você entender o significado da citação. É uma conversa imaginária em que Montezuma reflete sobre a derrota para Hernán Cortés.

“Nunca entendem as ideias simples; as funções elementares da vida humana são três: a agricultura, a indústria e os transportes. Todos os problemas dependem de como se planta, como se fabrica e como se transporta (…)” (de Henry Ford, p. 224)

– Ah, então tá bem, Mr. Ford; sempre achei que todos os problemas vinham de outras três coisas: governo federal, governo estadual, governo municipal. Agora ficou mais fácil consertar.

 

 

revisto por Mayra Corrêa e Castro © 2014

 

 

CALVINO, Ítalo. Um general na biblioteca. Tradução Rosa Freire d´Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

 

 

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