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Os estrangeiros do trem N – Sergio Vilas-Boas

Postado às 18:00 do dia 21/07/12

Houve um tempo em que brasileiro que era brasileiro mesmo queria sair daqui, porque este paisinho não merecia o suor de seu talento. Quando isso? Ah, sim, até uns nove anos atrás, mais ou menos. Agora todos querem vir pra cá. De pessoa física a inúmeras jurídicas, ex-brasileiros e demais estrangeiros querem vir pra cá ganhar o seu bocado. Pra quem tem mais de trinta anos, fica difícil acreditar que isto, este Oyapock-Chuí seja a bola da vez. Quem teve como primeiro ídolo Neymar ao invés de Zico não entende como coca-cola pode ser melhor que guaraná.

Mas emigramos, dezenas de milhares de brasileiros emigraram nas últimas décadas do século passado. O destino preferido, claro, foram os Estados Unidos. Era época em que obter visto dava status, dava vontade de chorar de alegria. Verdade que, como eu, sempre houve aqueles que desdenhavam a cultura norte-americana – Europa, sim, isto é que a cultura – e criaram aquela mania peculiar de nunca, nunca mesmo chamar estadunidense de americano, como se a brasilidade fizesse muita questão de se chamar americolatina. “Fazer a América”, então, para esses ouvidos, soava como insulto étnico.

Pois é sobre essa moçada que resolveu fazer a América de que trata o livro do jornalista, escritor e professor Sérgio Vilas-Boas (1965): Os Estrangeiros do Trem N. Escrito numa época em que a gente ainda declarava linha telefônica como patrimônio no Imposto de Renda, o livro é um romance, portanto, uma ficção, baseado numa extensa reportagem de campo sobre brasileiros que foram para Nova York, no começo dos anos 90, tentar a vida. Lançado em 1997, ficou para finalista do Prêmio Jabuti, no ano seguinte, na categoria reportagem, embora reportagem strictu sensu não seja.

Explico: Sergio é um dos caras que desbravam o gênero do jornalismo literário no Brasil. Foi um dos que fundaram a Academia Brasileira de Jornalismo Literário e já escreveu vários livros no gênero, sobre o gênero e subgêneros, como biografias e perfis. Jornalismo literário é escrever uma reportagem com extensa e profunda reportagem de campo dando um verniz literário ao texto. É dar fatos reais com ponto de vista bem particular.

O ponto de vista particular d´Os Estrangeiros… é rápido, lúcido, afiado, prolífico e tem a cumplicidade não de um autor brasileiro, mas de um jornalista com seus personagens brasileiros. Fossem libaneses, indianos, argentinos e o resultado seria o mesmo, porque o envolvimento de Sérgio na história é o do antropólogo que se apaixona por uma tribo, defende-a dando-lhe voz de protagonista, mas não se esquece de que está lá para retratá-la sem preconceitos, e também sem paternalismos.

No final, a leitura do livro traz excelentes sacadas, das linguísticas às sociolinguísticas; é uma ótima fonte de informação para entendermos por que os Estados Unidos continuam sendo um sonho de consumo; e um lembrete de que o Brasil, apesar de ter engrenado, ainda não fez a revisão dos mil quilômetros.

Ah, e, sim: Sergio é mineiro, embora isso não faça a menor diferença. Ou faz, vai saber. O livro é um “causo” do muito bem contado. Mas agora o autor mora em São Paulo. Em determinada altura do livro ele diz que um imigrante nunca retorna o mesmo depois de ter cruzado a fronteira. Posso atestar que sim, sou eu também uma paulista vivendo fora do estado. E uma coisa que muda mesmo quando cruzamos fronteiras é que ganhamos um passado pra contar de história.

Tá aí abaixo as melhores partes do livro.

Puxa, ia me esquecendo: o título. Sim, explicado logo nas primeiras páginas, Trem N é o nome da linha Astoria-Coney Island, ligando uma região lotada de imigrantes, clandestinos ou não, do Queens até Manhattan. No blog de Sergio tem uma foto do trem. Veja lá. Toda viagem rende saudades.

 

 

Diferenças Brasil x Estados Unidos

“Mas voltemos à neve. Passar o inverno nos Estados Unidos e não falar da neve para as pessoas comuns é o mesmo que ser brasileiro e nunca ter ido à Amazônia. Para fins diplomáticos, você será sempre um impostor aos olhos do americano médio.” (p. 15)

– Fosse Sergio um curitibano, a diferença de temperatura teria tanta importância? Brincadeira à parte, a descrição de como o frio e a neve impactam a chegada dos brasileiros é fundamental para a compreensão do descompasso que se instaura na vida de imigrantes. Somos peixes que vivem em aquários: muda o pH e passamos mal. Além disso, Sérgio tece metáforas muito precisas para descrever o gelo que vai se acumulando nas calçadas de Nova York. Abaixo coloco um parágrafo de metáforas poéticas e outro com as palavras de quem já tinha levado um escorregão no gelo:

“Pelo vão da persiana, via os floquinhos pontilhando a cidade de branco, como se a cobrisse de grinaldas. Para uma primeira vez, não acho que foi uma grande emoção. O véu de neve cai como um lenço de donzela, mas não sedutor o bastante para fazer com que eu saísse de casa e o apanhasse. No fundo, considerei-a (a neve) apenas uma novidade bem-vinda. Tanto que fiquei parado, observando, sem me dar conta de que a ampulheta do tempo era feita de pétalas brancas, geladas, e não de uma porção homeopática de areia da praia do Arpoador.”(p. 14-15)

“Os montes de gelo acumulados na sarjeta tornam-se um piso falso. Na base deles, inclusive, pode haver uma poça fria, miserável, insensível, pronta pra destruir qualquer ambição de conforto e civilidade. O que ainda não virou água amarronzada, em breve irá adqurir a tal coloração intermediária, entre o branco e o barro. Neste ponto, o gelo mais parece um daqueles picolés de Toddy que no Brasil os garotos vendem em caixas de isopor, nas praças, pontos de ônibus, sinais, campos de futebol de várzea.”(p. 16)

 

“- Tem mais: é melhor comer arroz com feijão num restaurante colombiano, por exemplo, do que num restaurante de dono brasileiro. Num colombiano é a metade do preço. É foda, meu camarada. Brasileiro cria inflação em qualquer lugar do mundo.” (p. 127)

– Achei genial esta conclusão. Vou indicar aqui o livro da Miriam Leitão pra você ler. (Aliás, preciso resenhá-lo.) A turma torce o nariz pra ela, mas digo uma coisa: não vi ninguém por aí preocupado em ensinar às novas gerações o perigo da inflação. Ela tem. Eu tenho também. Mas discordamos num ponto: enquanto Miriam acha que horror à inflação agora faz parte do DNA do brasileiro, eu acho que faz porcaria nenhuma. Nenhum povo com tanta ambição de consumir se preocupa com inflação.

“Fico imaginando o que seria o Brasil se tivesse tido mais de duzentos anos ininterruptos de liberdade de expressão. Quem sabe um artista de rua não seria sinônimo de ócio, de falta do que fazer, de estorvo. Estariam em toda a parte. Nos parques, nas calçadas. Encantando e encantados. A paisagem das grandes cidades seria tomada por grupos de teatro de rua, músicos, pintores, comediantes, bailarinos, malabaristas, todo mundo produzindo e atiçando sonhos.” (p. 226)

– Uma das conclusões comoventes a que chegam os protagonistas do livro é que, em Nova York, as pessoas não têm preconceito contra pobre. Difícil, né? Por aqui, temos.

“Outro traço cultural marcante são as críticas e autocríticas. No geral, o americano recebe a crítica como uma contribuição; o brasileiro, como ofensa pessoal e indício de inimizade.” (p. 280)

– Tá, sei que é ridículo, mas vou falar mesmo assim: a numerologia explica divinamente essa diferença. As línguas anglo-saxônicas produzem muitos nomes próprios cheios de H, Q e Z, letras que vibram a energia do 8, que é o número da autoconfiança. Critique alguém cujo nome vibre 8, o que ele faz? Agradece e vai embora, tranquilo tranquilo, porque sabe quem é e do que é capaz. Já as línguas latinas, caso da nossazinha aqui, carece de H, carece de Z e praticamente ignora nomes próprios com Q. Essa carência de vibração 8 traz melindre, insegurança, falta de autoestima. A numerologia explica divinamente as diferenças culturais. Mas, sim, eu sei: é um lixo de explicação.

“Na visão de Katherine, o namorado era um cidadão transnacional, dividido entre a ‘América eficiente’ e o ‘Brasil da gandaia’.” (p. 294)

– Certa vez, sobre o que eu acho um disparate ter Copa e Olimpíadas no Brasil, uma amigo fluminense me disse: “Ah, não, Mayra, se tem um período em que tudo funciona no Rio é no Carnaval. Falou em festa, o Rio é o lugar mais organizado do mundo.” Pois é: somos um país de gandaia eficiente.

 

 

Fazer a América

“- Quer comprar casa, carro zero e telefone no Brasil? Então coma (depressa), durma (pouco) e rale (dobrado).” (p. 23)

– Esta frase me lembra outra, que meu marido costuma repetir quando a coisas engrossam: “Empregado é o último que fala, o primeiro que apanha e come o que sobrar” ou esta: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo.” É a vida. Não há o que venha sem trabalho, exceto herança e loteria.

“A família exigia dele um sucesso que só foi possível assimilar com o passar do tempo. Por isso ele o assimilou na fantasia. Vivia num mundo imaginário, em que a prosperidade material era uma questão de força física, vontade de crescer, e não de tática.” (p. 98-99)

– Curioso que, a respeito dos imigrantes que foram lavar chão e guardar carros em estacionamentos nos EUA, sobreveio a força, e não a tática pra ganhar dinheiro. Aliás, ensinar tática é a razão de ser do Sebrae. Não deve ser fácil nem de ensinar, nem de assimilar, posto que o Sebrae continua ganhando dinheiro atrás de dinheiro com empresários que ainda não chegaram lá. É a tática do Sebrae.

Aí, você sabe como é, pobre quando ganha muito dinheiro, quer tudo dobrado: dois videocassetes, duas televisões, dois aparelhos de som, dois telefones, e por aí vai.” (p. 356)

– … dois mandatos…

 

 

Jornalismo Literário (JL)

“Naquele ponto, minha reportagem já havia desandado. Talvez porque eu tenha me tornado uma fonte de mim mesmo – um brazuca voluntário e confuso como tantos outros com os quais compartilhei solidão e saudades de casa.” (p. 15)

– Em JL, quando as coisas emperram, rendem pelo menos um parágrafo. É a Lei de Lavoisier.

“Angél insistia nos detalhes das lembranças, e sempre os resgatava em entrevistas posteriores. Certas incoerências costumam ficar de molho por um tempo, até que eu possa confrontá-las novamente em outra oportunidade.” (p. 32)

– O método para produzir JL é demorado e aqui Sergio nos revela como trabalha quando recolhe depoimentos.

“Mas tudo pode ser, como pode não ser. A história nem sempre é histórica. E a verdade nunca é aquilo que parece. A palava escrita, infelizmente, não pode ressuscitar a realidade, apenas os sentimentos e as lembranças de um tempo passado. Enfim, são os riscos deste meu estranho ofício.” (p.36)

– Desconheço bons escritores que vez por outra não se deem a refletir sobre seu trabalho.

 

 

Condição de imigrante

“Contudo, é dentro do avião, naquele ruidoso silêncio de turbinas, naquele escurinho de pessoas dormindo de boca aberta à volta, que brotam os primeiros ressentimentos migratórios: com a situação do seu país, com a sua própria e também com relação ao país de destino.” (p. 59)

– Toda viagem é oportunidade para reflexão. No tarô, tudo começa com O Louco, não é?

“- Meu filho, em qualquer lugar urubu é preto.” (p. 73)

– Não estivesse escrita no livro de Sergio, eu diria que a frase veio direto do Tropa de Elite. Tem ou não tem aquela filosofia de quem lida com as metralhadoras da vida? Mais adiante, Sergio explica porque urubu é sempre preto, não importa se você está no Brasil, Pequim ou Londres. Veja:

“Não adianta ser de país desenvolvido ou sub, emergente ou pós-industrial. A utopia de toda a sociedade gira em torno de valorizar o trabalho e punir o crime. Muitas vezes, paraíso e inferno são dois lados de uma mesma moeda.” (p. 73)

 

“E problemas são a pior tralha na bagagem de um imigrante.” (p. 100)

– Você conhece a história: viaje para esquecer os problemas; volte com eles aumentados. Com problemas, não se curte a paisagem.

“A saudade não é apenas um desejo de rever, mas também, e principalmente, uma vontade louca de dividir com as pessoas o que vemos (…)” (p. 163)

– Não tenho certeza em que filme tinha uma cena em que a mulher divorciada aprende que nos casamos para termos alguém que testemunhe nossa vida. Acho que é mais ou menos isso mesmo.

“Ninguém é o mesmo depois de romper fronteiras.” (p. 382)

– Tá aqui a frase sobre a qual comentei anteriormente.

 

 

Personagens

“Não era fraca como outras tantas mulheres que cruzaram seu caminho. Se preciso, Élvia cortava rente. Sabia controlar o noivo no seu ponto mais fraco: o desejo. Enfim, era um tipo de mulher que não permitia ser experimentada a fundo. Esta característica, aliás, é uma das mais indicadas em se tratando de derreter tipos que se orgulham muito mais do tamanho do pênis que de si mesmos.” (p. 99)

– Adorei esta frase “um tipo de mulher que não se permitia ser experimentada a fundo.” Li a chamada de uma pesquisa mostrando que a beleza é comum a pessoas de sucesso. Élvia era uma mulata bonita e fogosa. Fosse gordinha, baixinha e acneica, deixaria ser experimentada? Aliás, leia o conto AVON, de Andrea del Fuego, sobre o poder das mulheres bonitas. É o conto de como os homens são idiotas com toda esta coisa de beleza.

“Em Nova York, Plínio chorava. Não por causa de Collor de Melo, embora fosse uma boa razão, mas por causa de Élvia.” (p. 221)

– Collor é razão para anos de choro.

– O trecho abaixo é um bilhete escrito por um dos brazucas do livro. É formidável no que possui de crosslanguage. E depois dizem que temos que defender o idioma pátrio. Bobagem! A melhor defesa é não se defender. Veja que achado:

“(…) Parqueei mais de 100 carro ontem. A garage tava craudada. Bisado pra caramba. Pedi ao manager pra aplicar pra mudar de garage de novo. Aquele nêibur tá cheia de drug dealer (…) Ele diz que era unecessário. É pra mim esperar mais um poco que ele vai serapiar tudo. Eu tô mesmo pensando em cuitar (…)” (p. 371-372)

– Pra entender direitinho mesmo o bilhete, você precisará ler o livro. Não é um custo alto: o livro é ótimo.

 

revisto por Mayra Corrêa e Castro ® 2012

 

VILAS BOAS, Sergio. Os estrangeiros do trem N. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

O livro está esgotado na editora. Mas você poderá comprar um exemplar usado em sebos.

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