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O barão nas árvores – Ítalo Calvino

Postado às 20:49 do dia 22/01/15

O barão nas árvores foi publicado originalmente em 1957 e, junto com o anterior O visconde partido ao meio (1952) e o posterior O cavaleiro inexistente (1957), ambos já resenhados neste blog (aqui e aqui), acabam formando uma trilogia que a Cia. das Letras recém agrupou sob o nome de Os nossos antepassados para dar a visão completa dos personagens mais famosos e alegóricos do escritor italiano Ítalo Calvino (1923-85). Muito difícil decidir qual dos três é mais legal. Talvez um critério arbitrário seja o número de páginas: já que O barão nas árvores é mais comprido, prolonga o prazer da leitura.

A história é surreal, como dos outros dois romances (ou novelas, mais precisamente): o herdeiro do título de barão de Rondó, Cosme Chuvasco, aos doze anos, revoltado com os pais por não aceitar o castigo de comer escargots, decide viver em cima das árvores. A trama é tão brilhantemente arranjada, que acompanhamos esperançosamente, junto com a família de Cosme, que ele desista da ideia; e quando fica claro que ele pretende, realmente, nunca mais pôr os pés no chão, na mesma medida em que ele aprende a viver pendurado, aprendemos a diminuir nossa ansiedade pelo desfecho do livro, uma vez que o mais interessante passa a ser a vida dele lá em cima.

A história segue até seu enterro, na velhice. Tudo é contado pelo irmão de Cosme, e tem horas que a narrativa fica mais intimista, quando ele nos conta os segredos que ouviu do outro, tem horas que fica mais moralista, quando o irmão descreve a receptividade da cidade ao estilo de vida do barão. No começo, ficamos maravilhados com a engenhosidade de Cosme, a maneira encontrada para ter uma vida civilizada entre galhos e folhas. Para quem ama botânica, são descrições saborosíssimas. Então ele fica moço e descobre o amor e o prazer. São os momentos mais deliciosos no livro, mesclando lirismo com comicidade. E quando surgem as inevitáveis decepções da maturidade, o personagem fica amargo, mas continuamos torcendo por ele, assim como torcemos por nossos próprios sonhos e desatinos.

É uma fábula sobre tenácia e compaixão, sobre ter sonhos e adequá-los à realidade. Todos gostaríamos de ser teimosos o suficiente para viver em árvores, mas poucos sabem que sustentar teimosias exige uma grande dose de flexibilidade. Como as árvores: se você não pode se mexer, precisa desenvolver habilidades para que as coisas em volta se mexam até você.

Separei alguns trechos adoráveis. Espero que adore também.

 

Botânica

– Sobre a magnólia:

“Cosme estava na magnólia. Embora dotada de ramos densos essa planta era bem acessível para um jovem conhecedor de todas as espécies de árvores como meu irmão; e os galhos resistiam ao peso, apesar de não serem muito grossos e de sua madeira doce dascascar ao contato da ponta dos sapatos de Cosme, abrindo brancas feridas no negro da casca; e a planta envolvia o rapaz num perfume fresco de folhas, conforme o vento as tocava, revirando suas páginas num verdejar ora opaco ora brilhante.” (p. 20)

– Sobre a cerejeira:

“Cosme dirigia-se para a cerejeira mais próxima, ou melhor, para uma fila de altas cerejeiras com lindo verde frondoso e carregado de frutos negros, mas meu irmão ainda não tinha o olho educado para distinguir logo entre os ramos o que havia e o que não havia. Ficou ali: primeiro ouvia-se um rumor e agora não. Ele estava nos ramos mais baixos e sentia todas as cerejas que estavam por cima como se pesassem em suas costas, não saberia explicar como, pareciam convergir sobre ele, parecia uma árvore com olhos em vez de cerejas.” (p. 36)

– Sobre oliveira, figueira e nogueira:

“As oliveiras, por caminharem torcidas, são vias cômodas e planas para Cosme, plantas pacientes e amigas, na rude casca, para passar e tornar a passar em cima e também para se estabelecer, embora os galhos grossos sejam poucos por planta e não exita grande variedade de movimentos. Ao contrário, numa figueira, estando atento para não vergar ao peso, não se termina nunca de girar; Cosme acha-se sob o pavilhão das folhas, vê transparecer o sol em meio às nervuras, os frutos verdes que encorpam aos poucos, aspira o látex que rumoreja em torno dos pedúnculos. A figueira domina quem nela sobe, impregna com seu humor borrachento, com o zumbido dos zangões; em pouco tempo Cosme tinha a sensação de estar virando figo ele mesmo e, sem jeito, ia embora. Na dura sorveira ou na amoreira, as pessoas se sentem bem; é pena que sejam raras. Assim acontecia com as nogueiras: para ser franco, ao ver meu irmão perder-se numa nogueira interminável, como num palácio de muitos andares e inumeráveis cômodos, até eu sentia vontade de imitá-lo, ir lá para cima; tamanha é a força e a certeza que aquela árvore dedica para se tornar árvore, a obstinação de ser pesada e dura que afirma inclusive nas folhas.” (p. 77)

– Sobre azinheira, plátano, olmo, faia, carvalho, castanheiro:

“Cosme sentia-se muito bem entre as onduladas folhas das azinheiras (ou carvalhos ílex, como os chamei enquanto se tratava do parque da nossa casa, talvez por influcência da linguagem rebuscada de papai) e amava sua casca gretada, cujos quadradinhos arrancava com os dedos quando estava pensativo, não por instinto de fazer-lhe mal, mas como maneira de ajudar a árvore na sua longa fadiga em refazer-se. Ou então tirava as escamas da alva cortiça dos plátanos, descobrindo estratos de velho ouro mofado. Adorava também os troncos encaroçados que tem o olmo, que em seus nós refaz brotos tenros, tufos de folhas denteadas e sâmaras assemelhando papel; mas é difícil mover-se, pois os ramos estiram-se para o alto, esguios e enfolhados, deixando pouca passagem. Nos bosques, preferia faias e carvalhos: porque no cimo as copas bem próximas, não rígidas e cheias de agulhas não deixam espaço nem pontos de apoio; e o castanheiro, entre folhas espinhosas, invólucros ouriçados, casca, galhos altos, parece feito de propósito para dele se manter distância. (p. 77-78)

 

Desatinos

“Apesar disso foram pais ótimos, mas tão distraídos que nós dois podíamos crescer quase por conta própria.” (p. 11)

– Esqueça teorias psicológicas: pai ótimo não é aquele que se incomoda em dizer não, mas que nem percebe que o filho perguntou.

“As tarefas que se baseiam numa tenacidade interior devem permanecer mudas e obscuras; por pouco que alguém as anuncie ou delas se vanglorie, tudo parece supérfluo, sem sentido ou até mesquinho.” (p. 48)

– Já sabe, né? Bico calado.

“E mesmo que, nos últimos tempos, à força de estar em meio aos livros ficara com a cabeça meio nas nuvens, cada vez menos interessado pelo mundo ao redor, agora, a leitura da Enciclopédia, certos belíssimos verbetes como Abeille, Arbre, Bois, Jardin faziam-no redescobrir todas as coisas em torno como novas.” (p. 112-113)

– Quem não ficaria feliz de novo com tais verbetes?

“Mas em toda aquela ânsia havia uma insatisfação mais profunda, uma falta, naquela procura de gente que o escutasse existia uma busca diferente. Cosme não conhecia ainda o amor, e toda a experiência, sem essa, o que é?” (p. 135)

– Também não sei.

“Então, para vencer o pudor natural de seus olhos, ficava observando o amor dos animais. Na primavera, o mundo sobre as árvores era um mundo nupcial: os esquilos amavam-se com movimentos e gemidos quase humanos, os pássaros se acasalavam batendo as asas, até as lagartixas corriam juntas, com os rabos enlaçados; e os porcos-espinhos pareciam ter se tornado macios para fazer mais doces seus abraços.” (p. 136)

– Como me contaram daquele cartaz bem-humorado dentro do elevador do prédio: “Não reclame do vizinho que faz amor de madrugada. Faça amor, não faça guerra.”

“- Não pode haver amor se não somos nós mesmos com as nossas próprias forças.” (p. 193)

– Absolutamente. Tudo que há pra se entregar é o que se vê.

“Somente sendo tão impiedosamente ele mesmo como foi até a morte, podia dar algo a todos os homens.” (p. 233)

– Sempre, sempre, 100% das vezes nos esquecemos que o importante é a voz própria

 

Hiperbólicas risadas

“Das bocas daqueles piolhentos saiu uma risada em forma de mugido, antes mesmo que se abrissem e explodissem em berros animalescos […]” (p. 48)

– São piolhentos, e mugem e berram animalescamente. Me parti!

“Outro problema: fazer suas necessidades. No começo, aqui ou ali, não fazia diferença, o mundo é grande, fazia onde calhava.” (p. 80)

– O mundo é grande, sim!

“Aquela presença necessária que para o cão é o homem e para este é o cão não os traía jamais, nem a um nem ao outro; e, por mais diferentes que fossem de todos os homens e cães do mundo, poderiam declarar-se, como homem e cão, felizes.” (p. 85)

– Eu vos declaro, casados, homem e cão. E que sejam felizes para sempre.

“ – Você vive em cima das árvores e tem a mentalidade de um tabelião com gota.

– Os empreendimentos mais audaciosos têm de ser vividos com o ânimo mais simples.” (p. 186)

– Gota?! Ele realmente disse um tabelião com gota?! Muito engraçado.

“Tudo muito bonito, porém eu tinha a impressão de que naquele tempo meu irmão não só havia enlouquecido completamente, mas estava também se imbecializando um pouco, o que é mais grave e doloroso, pois a loucura é uma força da natureza, no mal ou no bem, enquanto a cretinice é uma fraqueza da natureza, sem contrapartida.” (p. 198)

– Inclusive, serve como atenuante de pena; tem esta vantagem, a loucura.

 

Escrito por Mayra Corrêa e Castro © 2015

(Se compartilhar ou citar, mencione a fonte. É simpático e eu agradeço.)

CALVINO, Ítalo. O barão nas árvores. Tradução Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras/Companhia de Bolso, 2009/2012, 2ª reimpressão.

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