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A biblioteca à noite – Alberto Manguel

Postado às 19:10 do dia 16/12/12

A experiência da grandes livrarias tirou um pouco do impacto das grandes bibliotecas. Projetos para novas grandes bibliotecas tendem emular a atmosfera de grandes livrarias, acrescentando às salas de leitura e de empréstimo uma cafeteria, uma loja de pequenas lembranças, talvez uma ala de exposições de fotos e um pequeno auditório. É quase certo que os jovens achem mais interessante uma megastore num shopping, onde os livros, com capas lustrosas e coloridas, se amontoam em pilhas geométricas sob a temperatura constante de 23 graus Celsius, que o espaço comum e silencioso, levemente modorrento e sorumbático de uma biblioteca pública.

Não Alberto Manguel. Não Borges. Não Umberto Eco, não Jean-Claude Carrière nem outros tantos que declararam em ensaios sua absoluta devoção à bibliofilia. A Biblioteca à Noite, escrito pelo argentino naturalizado canadense Alberto Manguel (1948), ensaísta e tradutor, é um ode às bibliotecas, particulares e públicas, existentes e não mais existentes e até às imaginárias, àquelas que resistiram bravamente a ataques de todas as espécies e às que sucumbiram diante de pessoas idiotas.

Nesse livro, Manguel parte da construção de sua própria biblioteca no interior da França, que reuniu os livros que ele tinha espalhados pelo mundo, para escrever uma história afetiva sobre bibliotecas. Deliberadamente bem humorado, realista e modesto, frequentemente poético, o livro mostra que as bibliotecas, no fundo, não são cultuadas porque oferecem conhecimento, mas, sim, companhia. Belíssimo livro.

Leia as melhores passagens e bon voyage!

 

Todos os livros que não li

“Os visitantes costumam perguntar se li todos os meus livros; minha resposta costumeira é que com certeza abri cada um deles. O fato é que uma biblioteca, seja qual for seu tamanho, não precisa ser lida por inteiro para ser útil; todo leitor tira proveito de um sábio equilíbrio entre conhecimento e ignorância, lembrança e esquecimento.” (p. 210)

“Não tenho nenhum sentimento de culpa diante dos livros que não li e talvez jamais lerei; sei que meus livros têm uma paciência ilimitada. Vão esperar por mim até o fim de meus dias.” (p. 210)

“Os livros esquecidos de minha biblioteca levam uma existência tácita e discreta. Mesmo assim, sua própria qualidade de livros esquecidos às vezes me permite redescobrir uma história ou um poema como se fossem perfeitamente novos. Abro um livro que imagino jamais ter aberto antes e dou com um verso esplêndido que, digo comigo mesmo, não posso esquecer, para então fechar o livro e ver, na última página, que eu mesmo, mais sábio e mais jovem, marquei a mesma passagem quando a descobri, aos doze ou treze anos.” (p. 212)

 

Perdidos à noite

“Tirando a teologia e a literatura fantástica, poucos duvidariam que os traços centrais de nosso universo são a escassez de sentido e a falta de objetivo palpável.” (p. 11)

“Mas a biblioteca à noite não é para todo o leitor.” (p. 22)

“Uma biblioteca não é apenas um lugar de caos e ordem: ela é também o reino do acaso.” (p. 139)

 

Atmosfera de leitura

“Por outro lado, o espaço em que mantemos nossos livros altera nossa relação com eles. Não leremos um livro da mesma maneira se estivermos dentro de um circulo ou de um quadrado, num cômodo de teto abaixo ou em outro de caibros altos. E a atmosfera mental que criamos no ato da leitura, o espaço imaginário que construímos quando nos perdemos nas páginas de um livro é confirmado ou refutado pelo espaço físico da biblioteca, e é afetado pela distância entre as estantes, o apinhamento ou a escassez de livros, as qualidades tácteis e olfativas, os graus variáveis de luz e sombra.” (p. 116)

“Os aposentos em que os escritores (essa subespécie de leitores) se cercam dos materiais de que precisam para seu trabalho adquirem alguma coisa de animal, à maneira de uma toca ou ninho, tomando as formas de seu corpo e oferecendo um receptáculo para seus pensamentos.” (p. 150)

“As palavras pedem por luz para serem lidas, mas a luz parece se opor à palavra falada. Em meados do século XVIII, quando Thomas Jefferson introduziu o lampião Argand na Nova Inglaterra, observou-se que a conversa ao jantar, antes conduzida à luz de velas, deixou de sertão brilhante quanto antes, pois os melhores conversadores agora se retiravam para seus quartos para ler.” (p. 222)

 

O livro escolhe o leitor

“ ‘Uma grande biblioteca’, meditava Northrop Frye num de seus muitos cadernos, ‘tem o dom das línguas e enormes poderes de comunicação telepática’.” (p. 12)

“Os livros passam a ser a presença real, e eu, o leitor, é que sou convocado e atraído para um certo volume e uma certa página por meio de rituais cabalísticos de letras entrevistas.” (p. 20)

“Abrimos nosso caminho pelas infinitas estantes das bibliotecas, escolhendo este ou aquele volume por razões que mal discernimos: por causa de uma capa, um título, um nome, por causa de alguma coisa que alguém disse ou não disse, por um palpite, um capricho, um erro, porque pensamos encontrar neste livro um certo conto ou personagem ou detalhe, porque acreditamos que foi escrito para nós, porque acreditamos que foi escrito para todos exceto para nós e queremos saber por que fomos excluídos, porque queremos aprender ou rir ou nos abandonar ao esquecimento.” (p. 184-185)

“[Samuel Johnson] Tampouco buscava títulos específicos, mas lia o que lhe caísse nas mãos. A sorte, pensava ele, era tão boa conselheira quanto a erudição.” (p. 211)

 

Ler para se inspirar

“Aprendi com a longa experiência que, se quero escrever sobre um certo assunto pela manhã, as leituras sobre o assunto na noite anterior nutrirão meus sonhos não apenas com o argumento, mas com os próprios episódios da história.” (p. 22)

“Arrumar livros é uma atividade reveladora.” (p. 43)

“Os livros transformam-se ao sabor da sequência em que são lidos.” (p. 163)

“Pode bem ser que nenhum livro, por mais bem escrito que seja, consiga remover um grama de dor da tragédia do Iraque ou de Ruanda, mas pode bem ser que não haja livro, por mais mal escrito que seja, que não contenha alguma epifania para algum leitor.” (p. 193)

 

Proibido ler

“Os donos do poder banem livros por razões bizarras.” (p. 102)

“Em março de 2003, o cardeal Joseph Ratzinger (o futuro para Bento XVI) afirmou que os livros de Harry Potter ‘distorcem profundamente a cristandade da alma, antes mesmo que ela possa se desenvolver como é devido.’” (p. 103)

“(…) o destino das bibliotecas é decidido muitas vezes não por aqueles que as criaram em vista de seus méritos, mas por aqueles que desejam destruí-las em vista de seus supostos defeitos.” (p. 104)

“Pouco importa por qual razão uma biblioteca é destruída: toda proibição, mutilação, destruição, saque ou pilhagem faz nascer (ao menos como presença espectral) uma biblioteca mais estridente, mais cristalina, mais durável, feita de livros proibidos, saqueados, pilhados, destruídos ou mutilados.” (p. 109)

“Espero que s sonhos dos incineradores de livros sejam assombrados por essas provas modestas da permanência do livro.” (p. 113)

“Seremos jugados pelos livros que dizemos nossos.” (p. 163)

 

Livro, objeto fetiche

“Velhos ou novos, o único sinal de que sempre tento livrar meus livros (em geral com pouco sucesso) é a etiqueta autocolante de preço que livreiros malévolos pregam nas contracapas. Aquelas crostas brancas e daninhas saem com dificuldade, deixando feridas leprosas e trilhas grudentas às quais aderem o pó e a lanugem do tempo, fazendo-me desejar que seu inventor seja condenado a um inferno especial, viscoso.” (p. 23-24)

“Mas a ambição dos leitores não conhece limites.” (p. 53)

“Numa biblioteca, nenhuma estante vazia fica assim por muito tempo. Como a Natureza, as bibliotecas têm horror ao vácuo, e o problema do espaço é inerente à natureza de qualquer coleção de livros.” (p. 64)

“Toda biblioteca é autobiográfica.” (p. 162)

“Pode ser que, dada sua qualidade caleidoscópica, toda biblioteca, por mais pessoal que seja, ofereça a quem a explore um reflexo do que ele ou ela procura, um torturante momento de intuição de quem somos como leitores, um vislumbre dos aspectos mais secretos do eu.” (p. 250)

 

Bibliotecas

“Enquanto existiu, a Torre de Babel era uma prova de nossa crença na unidade do universo. Segundo a história, a humanidade vivia à sombra crescente da torre, num mundo sem divisões linguísticas, acreditando que os céus, como a terra sólida, lhe pertenciam de direito. A Biblioteca de Alexandria (em terreno quiçá mais sólido que o de Babel) foi construída para provar o contrário: que o universo era de uma variedade estonteante, e que essa variedade possuía uma ordem secreta.” (p. 28-29)

“É exasperante não saber como era a Biblioteca de Alexandria.” (p. 31)

“A biblioteca que pretendia ser o depósito da memória do mundo não soube conservar para nós a memória de si mesma.” (sobre Alexandria, p. 31)

“Em decorrência, além de ser um emblema do poder humano de agir por meio do pensamento, a Biblioteca tornou-se um monumento incumbido de derrotar a morte, que, como dizem os poetas, põe fim à memória.” (p. 36)

“Toda biblioteca ao mesmo tempo acolhe e rejeita. Toda biblioteca é, por definição, fruto de uma escolha, e de âmbito necessariamente limitado. E cada escolha exclui uma outra, uma opção descartada. O ato de leitura corre infinitamente em paralelo ao ato da censura.” (p. 96)

“O peso da ausência é um traço tão marcante numa biblioteca quanto os imperativos da ordem e do espaço.” (p. 99)

“As bibliotecas de livros imaginários nos deliciam porque nos permitem o prazer da criação sem a faina da pesquisa e redação.” (p. 233)

 

World Wide Web

“Em nossos dias, destituídos de sonhos épicos – que substituímos por sonhos de pilhagem – , a ilusão de imortalidade é criada pela tecnologia.” (p. 32)

“Sua virtude (sua virtualidade) produz um presente constante – o que para os pensadores medievais era uma das definições do inferno.” (sobre a www, p. 32)

“Mas a Web é um instrumento. Não deve levar a culpa por nossa preocupação superficial com o mundo em que vivemos. Sua virtude está na brevidade e na multiplicidade da sua informação; seria demais pedir que nos desse ainda concentração e profundidade.” (p. 189)

“Se a Biblioteca de Alexandria foi o nosso emblema de nossa sede de onisciência, a Web é o emblema de nossa sede de onipresença; a biblioteca que guardava tudo transformou-se na biblioteca que guarda qualquer coisa. Alexandria enxergava-se modestamente como centro de um círculo limitado pelo mundo conhecido; a Web, como uma definição de Deus imaginada pela primeira vez no século XII, entende-se como um círculo cujo centro está em toda parte e cuja circunferência não está em nenhuma.” (p. 264)

 

Papel x tela

“Como todo leitor sabe, uma página impressa cria seu próprio espaço de leitura, sua própria paisagem física, na qual a textura do papel, a cor da tinta, a visão do conjunto adquirem, às mãos do leitor, sentidos específicos que dão tom e contexto às palavras.” (p. 70)

“Comparados a um livro que revela a idade por seu aspecto físico, um texto na tela de computador não tem história.” (p. 187)

“Nossa sociedade futura, livre do papel, como a definiu Bill Gates num livro impresso em papel, é uma sociedade sem história, de vez que tudo na Web é instantaneamente contemporâneo (…)” (p. 187)

 

revisto por Mayra Corrêa e Castro (C) 2012

 

MANGUEL, Alberto. A biblioteca à noite; trad. Samuel Titan Jr.. São Paulo: Companhia das Letras, 2006; 1ª reimpressão, 2010.

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